A vingança da pós-verdade no documentário Cena do Crime: mistério e morte no Hotel Cecil
O hotel Cecil completou quase um século de vida. Inaugurado em 1924, quando ninguém imaginava que o local serviria de cenário a inúmeras histórias macabras, incluindo assassinatos e suicídios, desde a década em que foi construído, o hotel funcionou até 2017, no centro de Los Angeles (Figs. 1 e 2). De acordo com uma notícia publicada no site R7, o Cecil costumava ser “frequentado por assassinos, que jogavam restos mortais de vítimas no lixo do hotel” (R7, 2021). Fatos assustadores como esse transformaram o estabelecimento em um mito, razão pela qual alguns empresários do setor hoteleiro cogitaram reabrir o Cecil, no final de 2021. Porém, por causa da pandemia de covid-19, as obras atrasaram e a reinauguração ocorrerá provavelmente, apenas em 2022.
Quando as pessoas descobrem a localização central do hotel, na capital mundial do entretenimento, geralmente consideram isso um ponto positivo. Entretanto, o hotel fica no coração do Skid Row (Fig. 3), “a maior cracolândia dos EUA”, com “uma área de 54 quarteirões” e que “se mantém há décadas ‘nos fundos’ de Hollywood” (BBC, 2021, grifo no original).
Pelos mistérios intrigantes que envolvem o Cecil, esse hotel histórico é com frequência mencionado como um local mal-assombrado. Inclusive, em 2015, ele assumiu papel de protagonista na quinta temporada da série American horror story (EUA, 2015), dirigida por Brad Falchuk e Ryan Murphy. Com 12 episódios, a atração mostrou algumas histórias desconcertantes ocorridas no Cecil, que, na série, foi chamado de hotel Cortez. Público e crítica foram unânimes ao elogiar o cenário e o figurino, ambos feitos no estilo art-deco, além da atuação de Lady Gaga em um dos papéis principais (Figs. 4 e 5):
No mundo real, em 2013 uma nova tragédia abalou os moradores e hóspedes do Cecil, quando a jovem canadense Elisa Lam foi dada como desaparecida e depois o corpo dela foi encontrado em uma das caixas d’água do hotel. A história atraiu a atenção da imprensa e das redes sociais no mundo inteiro, despertando debates, teorias da conspiração e investigações extraoficiais. Evidentemente, em se tratando do macabro hotel Cecil, isso também motivou turistas curiosos, que desafiavam a sorte (ou o azar), hospedando-se lá, na tentativa de refazer os passos de Elisa e, talvez, descobrir alguma pista que pudesse solucionar o mistério da morte da estudante.
Aproveitando o circo midiático que se formou em torno desse crime não resolvido, a Netflix lançou a série documental Cena do crime: mistério e morte no hotel Cecil (EUA, 2021), dirigida por Joe Berlinger e composta de quatro episódios. Elisa Lam ficou poucos dias hospedada no Cecil e seu desaparecimento provavelmente ocorreu após estas cenas, gravadas pelas câmeras de segurança do hotel e que repercutem até hoje, na Internet (Fig. 6):
A série da Netflix, pelo menos no início, resgata todas as teorias que circulam até hoje, nas redes sociais, e que refletem o senso comum sobre o que teria acontecido com Elisa Lam. Porém, sem aviso, no episódio quatro, intitulado ironicamente “Verdade nua e crua”, o documentário desmistifica a aura macabra do Cecil, tentando mostrar que o crime pode ter uma explicação bem plausível (na opinião dos produtores, claro).
Para construir essa versão chapa branca do crime, até mesmo o YouTuber John Lordan, que, nos primeiros episódios, questiona intensamente a investigação da polícia e a conduta do médico legista, reaparece, no fim da história, para fazer uma confissão surpreendente: “Revi todos os meus vídeos antes de vir aqui” (CENA DO CRIME, 2021). Depois desse comentário, ele se desculpa, afirmando que lamenta pelo fato de ter agido como um “conspirador” (CENA DO CRIME, 2021). Coerente com a nova teoria de Lordan, Amy Price, gerente do hotel na época em que Elisa desapareceu, também expôe sua versão para a morte da garota. De acordo com Amy, Elisa subiu até o telhado do hotel pela escada externa de incêndio. Porém, ela mesma reflete: “Se existe prova? Não” (CENA DO CRIME, 2021). Ainda assim, Price defende sua hipótese, ressaltando que, se o acesso tivesse ocorrido pela escada interna, um alarme teria sido disparado. A tese dela simplesmente não se sustenta, já que o documentário também traz depoimentos de turistas que se hospedaram no Cecil, após a morte da jovem canadense. Eles relataram que usaram a escada interna e conseguiram abrir sem nenhuma dificuldade a porta que dá acesso ao telhado. Nessa ocasião, segundo eles, nenhum alarme disparou.
Também no quarto episódio, o ex-servente do Cecil, Santiago Lopez, volta à cena, para declarar que a tampa do reservatório em que ele achou o corpo de Elisa estava aberta. Esse é um dado contraditório no caso. Imagens veiculadas na imprensa mostram a polícia, na época, informando que a tampa estava fechada — o que aumentou o mistério e levantou à hipótese de assassinato. Entretanto, quando acompanhamos a série, parece que algumas pessoas decidiram que a melhor versão seria aquela em que a tampa estava aberta, dando razão para afirmar que Elisa cometeu suicídio ou morreu sozinha, por acidente.
Ao fim do pretenso documentário, a verdade inquestionável é que muitas perguntas ficam sem resposta e algumas delas são: Por que a polícia divulgou, no primeiro momento, que a tampa da caixa d’água estava fechada? Se foi mesmo o servente quem encontrou o corpo, ele não deveria ter afirmado a mesma coisa que a polícia divulgou à imprensa?
Em se tratando do passado do hotel Cecil e de todas as especulações que foram divulgadas, nas redes sociais, na ocasião da morte de Elisa, é impossível acreditar nessa reviravolta mirabolante da história oficial sobre o crime. Além disso, há a expressão corporal do ex-servente, que, quando perguntado sobre o fato de a tampa estar aberta, ele afirma que sim, mas desviando o olhar da câmera.
A fim de completar o desenlace frágil e inverossímil que o documentário propõe, o episódio quatro ainda traz esta fala, do policial Greg Kading, que investigou o caso, em 2013: “Foi uma falha de comunicação. Alguém disse que [a tampa] estava fechada, mas quis dizer que estava aberta. Foi um erro inocente” (CENA DO CRIME, 2021). Com o claro objetivo de reforçar essa explicação, outros entrevistados minimizam os fatos, como por exemplo, a possibilidade de o vídeo do elevador ter sido adulterado, já que as cenas rodam em ritmo mais lento do que o normal e as imagens trazem a data borrada, no canto da tela.
Diante de tantas pontas soltas, a culpa acaba recaindo sobre a vítima, Elisa Lam. Durante toda a série, o espectador fica sabendo de vários posts publicados pela jovem, na plataforma Tumblr. A maioria dos textos trata de solidão e depressão. Portanto, aproveitando esse viés, a conclusão do caso vem na voz da garota morta: “Depressão é um saco. Ponto final” (CENA DO CRIME, 2021). Como assim? Como negar ou desconsiderar as coisas nunca explicadas? Talvez isso seja um indício do fenômeno denominado pós-verdade, bastante comum, nos dias de hoje…
Em 2016, pós-verdade foi eleita “a palavra do ano segundo a Universidade de Oxford” (FÁBIO, 2021). Definido como “um substantivo ‘que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais’” (FÁBIO, 2021, grifo no original), esse termo revela que, atualmente, “a verdade está perdendo importância” (FÁBIO, 2021). Para explicar melhor do que se trata, André Fábio cita este exemplo de pós-verdade: “(…) o boato amplamente divulgado de que o Papa Francisco apoiava a candidatura de Donald Trump não vale menos do que as fontes confiáveis que negaram esta história” (FÁBIO, 2021).
Com base nessas retomadas – do episódio final da série da Netflix e do conceito de pós-verdade –, podemos tentar entender o paradoxo que se apresenta: tentando neutralizar a pós-verdade, com o objetivo de anular as versões fantasiosas, que alimentam as teorias da conspiração, o documentário acaba exaltando a pós-verdade. A versão defendida é a de que Elisa subiu pela escada externa de incêndio, acessou a caixa d’água, abriu a tampa e caiu. Depois, para tentar sair, do tanque, ela tirou toda a roupa (até mesmo as roupas íntimas), com a intenção de tentar voltar à superfície. Essa hipótese recusa as teorias mais malucas — de que Elisa era cobaia em um experimento para tentar conter novo surto de tuberculose, de que a livraria frequentada pela jovem, enquanto ela estava hospedada no Cecil, era uma espécie de local mágico e satânico, capaz de provocar a morte de algumas pessoas, etc. Entretanto, assumindo a versão mais objetiva e trivial, os produtores contrariam fatos bem objetivos também: o acesso fácil às drogas (já que Elisa estava bem perto da cracolândia californiana), os perigos que ela provavelmente pode ter enfrentado, nas ruas do Skid Row, o temperamento agressivo de Elisa com suas ex-colegas de quarto, o desejo da jovem de se aproximar sem medo de qualquer pessoa, apenas para tentar fazer novos amigos… Com base em tudo isso, é inevitável não questionar: Quem, então, acaba disseminando a pós-verdade: o público ou a própria série?
Pós-verdade… Será? Ou o que existe hoje é a velha inverdade de sempre? Se for assim, desde que o mundo é mundo, estaríamos vivendo na tal Sereníssima República, de Machado de Assis, onde imperam a mentira e a corrupção… A única coisa certa é que, para tentar neutralizar as especulações, os novos donos da história criaram sua própria versão, de acentuada inventividade, usando como prova as palavras da própria Elisa e deixando em branco vários enigmas: Por que o atestado de óbito foi rasurado? Por que o servente mudou de ideia sobre a tampa do reservatório? Por que o outro servente não foi entrevistado? Por que os pais de Elisa não falaram? Por que os acusadores do início da série abandonaram, ao final, suas próprias teorias? Por que o assassinato não é uma hipótese plausível, se Elisa estava hospedada no lendário e macabro Cecil? Por que a polícia não investigou os riscos que Elisa pode ter enfrentado, ao andar sozinha, pelas ruas do Skid Row?
Com um final tão pragmático e asséptico, a série não apenas culpou Elisa por seu próprio destino como também anulou o misticismo que cerca o hotel Cecil. Na versão apresentada, Elisa não ficou perturbada, nem viu fantasmas. Ela apenas deixou de tomar os remédios… Diante disso, o debate foi anulado e, no lugar dele, foi imposta uma unanimidade falsa e burra. Porém, como já dizia Nelson Rodrigues: “Toda unanimidade é burra. Quem pensa com a unanimidade não precisa pensar” (RODRIGUES, 2021).
One thought on “A vingança da pós-verdade no documentário Cena do Crime: mistério e morte no Hotel Cecil”