Rondando as fronteiras do Sagrado
Íntegra da comunicação feita no II Colóquio de Poesia Goiana (UFG), no dia 20 de agosto passado.
É possível traçar um paralelo entre a poesia de Sônia Maria Santos e a de Dora Ferreira da Silva. Sem correr muito risco de errar, pode-se aplicar à poesia da goiana o que Gustavo Bernardo considerou relevante destacar em Dora resumido nesta citação a José Paulo Paes, na qual ele “reconhece Dora na linhagem daqueles poetas cuja palavra ronda as fronteiras do sagrado, vendo na realidade o espaço aberto da hierofania” (BERNARDO, 2002, p. 245).
Sabe-se que a linhagem de um poeta nos interessa na medida em que as filiações e as teias de invenção que este(a) tece nos servem de guia para o horizonte da leitura. Sim, estará o leitor mais experiente a reconhecer um vínculo familiar entre as duas poetisas, separadas entre si por alguns anos – Dora viveu de 1918 a 2006; Sônia, de 1945 a 2020.
À poesia de Sônia Santos é também aplicável a expressão de Gaston Bachelard[i] tomada de empréstimo a Pierre-Jean Jouve, aquela afirmação de que a poesia é uma alma inaugurando uma forma.
Da obra de Sônia destacarei neste artigo algumas amostras que intentam justificar a elaboração de uma poesia que ronda os domínios da mística e a parcela (in)contida de metafísica da autora e seu itinerário poético rumo ao sagrado.
Já na fortuna crítica da obra de Sônia, notam-se nuances dessa forma de olhar nas análises de Maria Helena Chein, Darcy França Denófrio e Heloísa Helena de Campos Borges.
Já no livro de estreia, “A teia dos dias” (1985), Maria Helena Chein destacava que “a poética de Sônia Maria Santos mostra que consciência, espírito criador e realidade interligam-se, numa fluidez do pensamento existencial, constituindo a dinâmica de sua produção[ii]”.
Analisando o livro “Todas as fábulas”, a professora, poetisa e crítica de literatura Darcy Denófrio[iii] traçou em artigo para o jornal Diário da Manhã, alguns paralelos entre a poesia de Sônia Maria Santos e de Adélia Prado – pontuando “algumas ressonâncias” entre ambas:
Guardadas as sensíveis diferenças de estilo entre ambas, a imbricação do sagrado com o profano é também algo que as irmana. Em Sônia, o fenômeno comparece nos poemas “Mística” e “Entre cinzas”, além de outros, sobretudo na seção QUASE REZA. Humanas, com seus sentimentos humanos peculiares, podemos flagrar as duas. Adélia, no poema “O santo ícone”, da obra mencionada, extravasa seu sentimento de raiva e, finalmente, se aplaca. Sônia, em “Prazer secreto”, destrói uma flor, que pode ser pura metáfora. Somente ela sabe o que destrói. (DENÓFRIO, 2015).
Denófrio ressalva que “todavia, diferentemente da autora mineira, [Sônia] o faz com muita sutileza, lembrando-nos a receita de Emily Dickinson que recomenda dizer toda verdade, mas de forma oblíqua. O sucesso consiste no giro, no circunlóquio, enfim, na dissimulação”
Vem de Heloísa Helena de Campos Borges a vinculação do olhar poético de Sônia Maria Santos ao que Heloísa definiu como “O tempo e o lugar para o secreto e o sagrado[iv]” e recorrendo a Santo Agostinho, que:
“para melhor demonstrá-lo, ele [Agostinho] empregou o termo distentio animi – distensão da alma – e propôs o sentido de distensão como resultante de uma extensão. A alma dilatada pelo tempo favorece junções e acomoda a coexistência do que foi, do que é e do que poderá vir a ser vivido”. (CAMPOS BORGES, 2020).
É, pois da convivência da experiência entre “passado e presente” que a poetisa irá recolher a matéria poética do livro em tela “transitando no tempo e aflorando sensações tão plenas de significação” e isso, afirma Heloísa Helena “não apenas porque versos brotados da sua alma e substanciados pelo seu tempo, mas também porque estruturados no terreno da poesia” – terreno este tido e havido como “lugar de revelação” (conforme a definição do poeta e crítico mexicano Octavio Paz)
É este “lugar de revelação”, pois, meu foco principal aqui – o livro “Matéria da alma” (vide capa, fig.1), que desde a escolha do título nos remete a uma busca metafísica. Apoiado nas teses de Santo Tomás de Aquino (1225-1274) em suas “Questões disputadas sobre a alma[v]”, procuro entender a contradição de “matéria” e “alma” de que trata a poeta Sônia Maria dos Santos.
Releia-se o poema-título:
Matéria da alma
Danço ainda com uma flor na boca
a esperança toda numa valsa.
Da alma, a matéria o tempo não gasta:
prossegue, amante, peregrina;
entre a alegria e o assombro
das horas repetidas;
entre a luz que chega e cega
e da que suavemente pousa na retina.
Ao analista resta provado que a poetisa não saca o “hilemorfismo” da polêmica que foi dirimida pelo Aquinate na Questão VI do livro citado. “O tempo não gasta a matéria da alma” – estaria o verso três (acima) se transcrito em forma prosaica. Ao que se segue: [a alma] da persona poética ali “prossegue, amante, peregrina;/entre a alegria e o assombro…” – tornando-se, pois, ato e potência, em total usufruto de sua liberdade (poética).
O que vemos em ação no poema é o “intelecto possível” da poetisa que se põe a serviço do fazer poético, “não porque sua alma [dela, poetisa] seja uma forma material, mas porque possui semelhança com a matéria, na medida em que está em potência para as formas inteligíveis, assim como a matéria o está para as formas sensíveis” (AQUINO, 2012, p. 139).
À maneira de São João da Cruz, Sônia sabe que as palavras são poucas para manifestar a revelação desta “luz que chega e cega” ou “da que suavemente pousa na retina” – a poesia e a revelação, donde poderia o leitor fazer paralelismo neste texto transcrito por Dora Ferreira da Silva, em breves comentários à poesia de San Juan de la Cruz[vi]:
“Porque, quem poderá escrever o que as almas amorosas, onde ele mora, experimentam? E quem poderá manifestar com palavras o que ele as faz sentir? E quem, finalmente, o que as faz desejar? Por certo ninguém, nem elas mesmas…”
Retomemos o fio, pois, e avancemos lendo outro poema do livro “Matéria da alma[vii]” (2011):
Só o verbo
Não mais
sobre a pedra
o cordeiro degolado,
no manto claro
azul do dia.
Só o verbo
com sua lâmina
desce à cabeça,
à linha estreita, à escrita;
gota a gota,
num cântico,
com a face erguida.
Nesse poema, dois fatos atraem minha atenção como leitor: (a) a referência à violência sacrificial do episódio bíblico de Abraão, quando Jeová pede a este que sacrifique o filho Isaac; e (b) o próprio título do poema, com seu conteúdo que se desdobra ao longo do poema, com seu tema joanino, é referência ao cordeiro de Deus, ao verbo divino e à negação da violência pela assunção do Sagrado – “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus” (Evangelho de João, 1:1).
Se em outro trecho deste mesmo livro, a poetisa se declara “de poesia ferida”, aqui ela quer fugir da violência sacrificial porque já entendeu que não há mais necessidade do sacrifício para a redenção; cabendo ao leitor armar o melhor de sua capacidade interpretativa para buscar bem entender e, assim, fruir a inspiração mística que permeia todo o livro.
Em estudo sobre a teoria mimética (criada há mais de sessenta anos pelo francês René Girard) e o apocalipse, o historiador brasileiro Maurício G. Righi, entre outras candentes questões antropológicas, ressalta “a diferença entre o logos de Heráclito e o logos de João” (RIGHI, 2019, p. 168[viii]), que pode ajudar o leitor a entender como o verbo no poema de Sônia Maria poderia vir grafado com V maiúsculo. Transcrevo para melhor compreensão deste ponto:
O Logos joanino é estranho a qualquer tipo de violência; ele é, portanto, eternamente expulso, um Logos ausente que nunca teve nenhuma influência direta ou determinante sobre as culturas humanas. Essas culturas baseiam-se no Logos de Heráclito, o Logos da expulsão, o Logos da violência, o qual, se não for reconhecido, pode fornecer a fundação de uma cultura (GIRARD, apud RIGHI, 2019, p.169).
Alguns versos podem ser saboreados pelo leitor como provas, evidências objetivas deste ponto, sendo o mais forte desses momentos aquele mesmo em que “a lâmina” que desce à cabeça da poeta é pura iluminação, é água vivificante que desce “gota a gota”. Já o leitor sabia que
“o que brota
ascende
ilumina
e alguma coisa explica
não sei quando” (p. 23)
Eis, pois, a poetisa naquele estado de experiência da alma em sua vivência intensa do divino:
“o que sou:
louca e santa
e de poesia ferida”
(p.27)
E nesse “movimento de entrega ao cerne numinoso da interioridade” (SILVA, 1984, p. 26), Sônia como os poetas metafísicos (e os místicos) “não se vangloria de si mesma, porque seu centro é a própria impulsão do espírito” (da alma):
“Canta um deus
desce a luz
a manhã madura.”
(p.31)
Assim, nem mesmo a noção erótica de prazer e dor lhe é adversa, naquela “fusão do sensual com o espiritual” (GOMES, 1991), que é outra característica dos poetas metafísicos, segundo Aíla de Oliveira Gomes.
Beija e gosta
O dia é cinza
a dor é nova:
rumores, sinas,
mil castanholas.
A dor não dorme:
tem pressa
aperta-me
beija e gosta
do corpo e da alma que tenho,
meio guitarra de Lorca.
(p.61)
Tampouco a morte assusta a persona poética que prevê o purgatório próximo, em
“Levanto os pés”:
Levanto os pés e olho longe:
lápis de cores sobre tudo.
Só o sono das crianças
e dos cordeiros
em brancos lírios.
E quando os vivos, querendo Deus,
não mais voltarem para casa,
será ainda o mundo um horizonte
de espumas e luas e sol cravado.
(E quando ao Letes
eu chegar em segredo,
será como uma árvore no seu tempo).
(p.37)
Nota-se, portanto, como marcante na poesia de Sônia Maria Santos aquela característica destacada por Aíla de Oliveira Gomes[ix] sobre os poetas metafísicos ingleses, a saber que “a profundeza da concepção cristã da vida e o forte pendor espiritual entre os poetas metafísicos – [em que] o humano, para eles, esteja indissoluvelmente ligado ao divino” (GOMES, 1991, p.13)
Olhando os lírios
Sobre o meu ombro
Deus põe sua mão sagrada,
o que mais quero;
quando na tarde
no campo
olhando lírios
soluço e grito
(de perfeição)
a pretexto de quem reza.
(p.105).
A essa característica marcante, sustento a hipótese de que à poesia de Sônia, como à de Dora se aplica a frase da própria Dora sobre San Juan de la Cruz, isto é, que “os poetas místicos vivificam a letra que palha seca seria se apenas o discurso teológico fosse seu veículo.”
Dá-se com a poesia de Sônia Maria Santos aquela característica destacada por Aíla de Oliveira Gomes sobre os poetas metafísicos ingleses, a saber que “a profundeza da concepção cristã da vida e o forte pendor espiritual entre os poetas metafísicos – o humano, para eles, estando indissoluvelmente ligado ao divino”.
Ao concluir, revisita-se este poema que prova como nenhum outro, o que se deseja demonstrar com esta participação no II Colóquio de poesia goiana (UFG) sobre a poesia de Sonia Maria Santos:
Frei Juan de la Cruz
Ao menor sinal de vento
de água corrente
de pedra e musgo,
seu pé no chão
e a bondade.
Na barra da tarde, Frei Juan
entende-se com seus irmãos de alma.
De dores, principalmente.
Faz poesia, derrama seu cálice.
(p.89).
Referências bibliográficas
“A Teia dos dias”, Goiânia: Editora da UCG, 1985.
“Casa do Tempo”, Goiânia: Kelps, 1995; 4ª. ed. Goiânia: Kelps, 2011.
“Mar Invisível”, Goiânia: Kelps, 2000; 5ª. ed. Goiânia: Kelps, 2012.
“Todas as Fábulas”, Goiânia: Kelps, 2006.
“Matéria da alma”, Goiânia: Kelps, 2011.
“Lúcida Chama”, Goiânia: Kelps, 2015.
“Todas as Fábulas”, Goiânia: Kelps, 2ª Edição 2015.
Prêmios recebidos por Sônia Maria Santos:
Com o livro “Todas as Fábulas” recebeu em 2007 o Prêmio Nacional “Francisco da Silva Nobre”, da União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro; Prêmio “Colemar Natal e Silva”, conferido pela Academia Goiana de Letras. Em 2012, recebeu como Destaque Cultural, o Troféu Santuário da Arte na sua XIII Coletiva de Escritores e Pintores. Em 08 de março de 2013, Sônia recebeu a comenda Berenice Teixeira Artiaga, na Assembleia Legislativa do Estado de Goiás. Prêmio Nacional de 2015, “Orígenes Lessa”, da União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro, concedido ao livro “Lúcida Chama”; ainda em 2015, recebeu da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás (Aflag) o troféu “Mulheres que engrandecem o Estado de Goiás”.
ATENÇÃO! Problema a resolver: o Edital do Colóquio diz ser OBRIGATÓRIO CONTER as seções: introdução, metodologia, resultados e discussões, considerações finais e referências
[i] HIRSCH, Edward. “How to read a poem and fall in love with Poetry”, New York: Double Take Book/Harvest Book, 1999, p. 30.
[ii] SANTOS, Sônia Maria. “A teia dos dias”, Prefácio de Maria Helena Chein. Goiânia: Editora Universidade Católica de Goiás, 1985, 116 p. ilust.
[iii] DENÓFRIO, Darcy França. “Uma voz que se faz notar”, artigo em Diário da Manhã, …/…/2015.
[iv] CAMPOS BORGES, Heloisa Helena de. “Tempo e lugar para o secreto e o sagrado” in: “Revista da Academia Goiana de Letras e Artes de Goiás (Aflag), n. 09 (2019/2020), p. 100/7.
[v] TOMÁS DE AQUINO, Santo, (1225-1274). “Questões disputadas sobre a alma/de Aquino, Santo Tomás; tradução de Luiz Astorga. – São Paulo, É Realizações, 2012. – (Medievalia).
[vi] SAN JUAN DE LA CRUZ. “A poesia mística de San Juan de la Cruz”, tradução de Dora Ferreira da Silva. Prefácio de Hubert Lepargneur. Estudo “Mística e poesia” por Dora Ferreira da Silva. São Paulo, SP, Ed. Cultrix, 1984.
[vii] SANTOS, Sônia Maria. “Matéria da alma”. Goiânia: Kelps, 2011, p. 29.
[viii] RIGHI, Maurício G. “Sou o primeiro e o último: estudo em teoria mimética” / Maurício G. Righi. – São Paulo, SP: É Realizações Editora, 2019. 504 p.
[ix] GOMES, Aíla de Oliveira. “POESIA METAFÍSICA” / William Shakespeare et alli. Seleção, tradução, introdução e notas. – São Paulo: Companhia das Letras, 1991.