Foi assim que aquele amigo virou um estacionamento
Lembra daquele casarão antigo tão marcante que carregava tanta história? Deu lugar a um estacionamento amplo e sem vida. Sabe aquela pessoa que brilhava tão reluzente nas conversas, nos encontros, entre os amigos, incrível na família? Deu lugar a um espaço vazio e estéril, sem qualquer personalidade. Quando as pessoas brilhantes deixam de existir? Quando os monumentos somem dos espaços públicos?
Uma das justificativas para uma pessoa acesa se apagar está no estilo com que levamos a vida. Nos afundamos em sonhos – muitas vezes inspirado por outros e não por nós mesmos. Nos afundamos em perspectivas que nem condizem com nossas personalidades. Primeiro que a exigência de sucesso e do alcance de uma vida de família de propaganda de margarina é sentença de frustração. Felicidade é instante, não constante. Felicidade é lá, ali, aqui, em pedaços soltos. O conjunto é, no máximo, agradável. Nisso vem a frustração.
Por necessidade de uma busca de vida confortável – relacionada à realizações financeiras, ao consumo e às etapas ditas obrigatórias pela sociedade, como casamento e filhos – o ser humano, antes genuíno, acaba se tornando um reprodutor de comportamentos rasos, refém da rotina moderna de sono ruim, cansaço mental e físico, trabalho irritante e sem qualquer realização pessoal, cobranças familiares e pequenos escapes, como algumas comidas que engordam, mas alimentam a antitristeza, algumas atividades que afagam o coração que bate a conta gotas.
Já os casarões e prédios históricos são, aos olhos de alguns, elefantes brancos que atrapalham o desenvolvimento e a economia. Não é concebível em uma sociedade normal a possibilidade de demolição de uma construção importante para dar lugar a estacionamentos. O carro é assim tão mais importante que a história do seu lugar? Vale, sobre carro, lembrar o cronista carioca João do Rio:
“Para que a era se firmasse fora preciso a transfiguração da cidade. E a transfiguração se fez como nas férias fulgurantes, ao tan-tan de Satanás. Ruas arrasaram-se, avenidas surgiram, os impostos aduaneiros caíram, e triunfal e desabrido o automóvel entrou, arrastando desvairadamente uma catadupa de automóveis. […] Graças ao automóvel a paisagem morreu – a paisagem, as árvores, as cascatas, os trechos bonitos da natureza. Passamos como um raio, de óculos enfumaçados por causa da poeira. Não vemos as árvores. São as árvores que olham para nós com inveja. Assim o automóvel acabou com aquela modesta felicidade nossa de bater palmas aos trechos de floresta e mostrar ao estrangeiro a natureza” (João do Rio,1911).
A mesma transformação que levou morros ao chão e pobres às favelas, na reurbanização do Rio de Janeiro no início do século XX, foi retomada no início do século XXI. Seja na capital, na Baixada ou no interior, muitos prédios foram derrubados por conta da tola necessidade de abrigar carros por algumas horas. Carros que mal cabem nas ruas, como caberiam nas outras partes da cidade?
E as pessoas? Mal cabem em suas rotinas. Seus dias, por conta das contas, deveriam durar dois ou três. Suas horas produtivas deveriam ser mais produtivas para si, não para outros. E nessa dinâmica de patrão e empregado, senhor e servo, a pessoa se apaga para acender – e ascender – a outra. Isso vale para relações trabalhistas, para relações familiares e para relações conjugais. São pessoas que se tornam depósito de coisas e não de experiências. Tornam-se pátios de entulhos, acumulam pesos inúteis ao invés de irreverências. Foi assim que vi prédios virando espaços rudes. Foi assim que aquele amigo virou estacionamento.
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