Operário patrão: uma releitura da obra Eles não usam Black-tie

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No mês de agosto deste ano, o ator, poeta e dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006) completaria 87 anos de idade. Sem dúvida, seu trabalho de maior repercussão foi a peça Eles não usam black-tie, escrita em 1955 e encenada, pela primeira vez, em 1958. A obra é representante legítima do Teatro de Arena. Aliás, no meio artístico, o ator e escritor destacou-se por seu engajamento político. Por meio do chamado populismo, Guarnieri, sobretudo no caso da peça aqui discutida, rompeu com osentimentalismo e o bucolismo, para dar relevo ao aspecto político-social:

[...] as personagens viam-se arrancadas de sua vida idílica e lançadas em plena luta social, com greves, manifestações coletivas, repressões policiais violentas [...]. Passando a agir como operários em luta contra os patrões, e não mais como simples indivíduos, assumiam eles não só a sua classe mas também uma herança revolucionária que, invertendo a expectativa (filhos rebeldes, pais acomodados), recaía sobre os mais moços como uma carga dura de suportar, tirando-os de seu sossego e prejudicando-os em seus projetos de ascensão econômica. (PRADO, 1996, p. 66)

Evidente que, para transformar os personagens em operários, a eleição de um cenário urbano foi determinante, porém, deve-se ressaltar que, mesmo migrando do campo para a cidade, os personagens, para realçarem o populismo, não são inseridos dentro de uma metrópole, mas à margem dela. São moradores de uma comunidade que funciona, na obra, como um microcosmo antitético por excelência, confrontando-se com o padrão burguês.

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Pensando especificamente no Teatro de Arena e na produção de Gianfrancesco Guarnieri, isso conta pontos para o aspecto acentuadamente crítico da obra, que tentava garantir espaço ao discurso dos silenciados, mesmo que isso representasse um risco, sobretudo na época em que a peça foi escrita e encenada, pouco antes de 1964 (Fig. 1).

Operário patrão: uma releitura da obra Eles não usam Black-tie
Figura 1: Em 1981, a peça virou filme, sob a direção de Leon Hirzman.
Imagem disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Eles_n%C3%A3o_usam_black_tie-cartaz1.jpg

O contorno político do texto torna-se evidente pela escolha do autor de retratar a classe operária e a exclusão, focalizando o homem comum, para depois se aproximar de grupos específicos, formado pelos moradores das comunidades, pelas mulheres e pelos trabalhadores. A ideia de dar voz a esses grupos configura-se como clara oposição ao discurso hegemônico: “Os escritores, sabendo que a ficção dá-se melhor com os vencidos, preferiam mostrar o tecido revolucionário pelo avesso, focalizando grupos que, ignorados pela sociedade oficial […], protestavam da única maneira que conheciam […]” (PRADO, 1996, p. 98).

Essa inserção da política no cotidiano (Fig. 2) e na literatura vem facilitar a associação da peça de Guarnieri com a concepção que norteava, já em 1929, os fundadores da Escola dos Annales, “Marc Bloch e Lucien Febvre, ao conclamarem os historiadores para estudarem o homem e todos os seus vestígios, e não somente as grandes personalidades […]” (LOURENÇO, 2008, p. 3).

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Adotando como pressupostos a análise do cotidiano e o destaque aos excluídos, a Escola dos Annales invertia por completo a sistemática seguida pela História oficial. Por essa razão, a doutrina defendida pela Escola dos Annales ressoa em Eles não usam black-tie.

Na peça, o enfoque da exclusão e do populismo atinge seu clímax com a oposição morro versus cidade. A diferença não é apenas espacial, mas também social e o curioso é que os próprios personagens da obra, moradores de uma comunidade, têm consciência da exclusão e, portanto, da diferença. É sobretudo na relação de Tião e Maria que tal oposição fica evidente (Fig. 3).

Operário patrão: uma releitura da obra Eles não usam Black-tie 2
Figura 3: No filme, assim como na peça, Tião e Maria apresentam perfis bastante distintos, desde o início do relacionamento. Imagem disponível em: https://ims.com.br/wp-content/uploads/2018/03/eles-n%C3%A3o-usam-black-tie-1024×576.jpg

Logo no início da peça, Tião diz a Maria que não lhe agrada a ideia de viver no morro, demonstrando seu total desencaixe em relação ao espaço e à realidade da comunidade. Sobre isso, observem-se os trechos transcritos:

TIÃO: — […]. Só tem uma coisa… Eu gostaria que tu tivesse tudo, num queria que minha mulhé vivesse em barraco…

MARIA: — Sempre vivi em barraco! E vivê com tu é o que interessa…

TIÃO: — Eu é que não me ajeito muito no morro. (GUARNIERI, 1997, p. 21)

MARIA: — […] Olha a cidade lá embaixo!

TIÃO: — Tu não gostaria de ir pra lá?

MARIA: — Hum, hum… não. É fria… Eu gosto do morro.

TIÃO: — Muito?

MARIA: — Eu gosto do pessoal. Olha o cruzeiro, Tião! Como tá bonito […]. (GUARNIERI, 1997, p. 72-73)

Nessas duas passagens, percebe-se como o tempo que Tião passou na cidade foi determinante para a ideologia que o personagem expressa. O descolamento temporário de Tião em relação ao cotidiano da comunidade faz com que ele apresente uma concepção totalmente oposta à de Otávio, razão do principal conflito da peça. O pai percebe com clareza a diferença que existe entre ele e o filho, que parece um estranho no mundo que já foi o dele. Conversando com Romana, Otávio fala: “— […] geralmente o sujeito melhora de casa e muda as ideia. O problema de Tião é esse — mora em casa errada! Dando um duro danado a gente se convenceu que melhorá só com muita luta… Tião, não. […] ele quer voltá a ser…” (GUARNIERI, 1997, p. 34).

Em dado momento, no texto, Tião revela à mãe que não aceita com facilidade a ideia de Maria continuar trabalhando depois de casada, ao que Chiquinho, que estava escutando a conversa, responde: “— Pensamento burguês…” (GUARNIERI, 1997, p. 56). A interferência do irmão caçula é mínima, mas resume a posição de Tião e as ideologias que sustentam a dicotomia morro versus cidade. Essa oposição adquire forma no principal conflito que ocorre entre pai e filho, quando a greve é declarada e a postura de ambos, diante do fato, é divergente, orientando atitudes também antagônicas. Enquanto Otávio encara a greve como um meio de lutar por uma vida melhor, Tião faz um pacto com os patrões: teria uma promoção e um aumento, desde que não aderisse à greve e fornecesse detalhes sobre o movimento.

A postura de Tião representa, de fato, o pensamento pequeno burguês. Em outra fala à Romana, o personagem revela: “— […] como seria bom viajá. Pegava um avião e zuuuuuum! Ia embora. Tomava café aqui, almoçava na Bahia… Jantava no México… Dormia no Japão…” (GUARNIERI, 1997, p. 54). Esse sonho de Tião dá a dimensão do afastamento que há entre ele e Otávio, personagem que representa o proletariado e ambiciona melhorar de vida, mas sem excessos.  Não lhe importa perder o emprego. Importa, sim, o fato de esse risco, espécie de sacrifício individual, render frutos para todo o grupo. “Enquanto o pai tem perspectiva do presente, o filho olha para um futuro. Para Tião, os acontecimentos assim rápidos e explosivos não alteram a História, e parecem quase que insignificantes numa perspectiva maior […]” (LOURENÇO, 2008, p. 10)

Em outro trecho da peça, Tião não se opõe apenas à ideia da greve, mas à condição de ser operário: “— […]. A greve me metia medo. Um medo diferente! Não medo da greve! Medo de sê operário! Medo de não saí nunca mais daqui! Fazê greve é sê mais operário ainda!…” (GUARNIERI, 1997, p. 109). Nesse momento, o modo pejorativo como Tião se refere a uma classe que é sua, mesmo que isso contrarie sua vontade, coloca em extrema evidência a luta de classes que norteia a peça. Comandando esse conflito estão os conceitos de individual e coletivo, que constituem o eixo temático da peça. Enquanto Otávio e Romana, assim como todos na comunidade, apostam no coletivo, para tentar obter melhorias e também para superar as dificuldades, como fica claro no instante em que a mãe diz ao filho que “é melhor passá fome no meio de amigo, do que passá fome no meio de estranho” (GUARNIERI, 1997, p. 107), Tião é guiado pela individualidade (Fig. 4): “— Cada um resolve seus galhos como pode! O meu, eu resolvi desse jeito” (GUARNIERI, 1997, p. 95).

Operário patrão: uma releitura da obra Eles não usam Black-tie 3
Figura 4: Cena que representa a oposição entre Otávio (o pai) e Tião (o filho). Imagem disponível em: https://diariodorio.com/wp-content/uploads/2019/08/Ot%C3%A1vio-e-Ti%C3%A3o-1280×720.jpg

Tião é operário, como Otávio, mas está contaminado pelos ideais burgueses. Essa contradição faz Tião romper com o pai e com os companheiros da fábrica, situação que sinaliza a fragilidade do movimento e da classe operária como um todo. Dessa forma, o conflito entre pai e filho provoca muito mais que o esfacelamento da família como célula social. Em consonância com o aspecto político da peça, a tensão nas relações familiares revela desunião e completa ausência do conceito de classe.

REFERÊNCIAS
ELES não usam black-tie. Direção de Leon Hirszman. Brasil: Leon Hirszman Produções e Embrafilme; Embrafilme, 1981. 1 dvd (134 min); son.
GUARNIERI, G. Eles não usam black-tie. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1997.
LOURENÇO, J. et al. Usando o black-tie: despindo a obra de Gianfrancesco Guarnieri — o cinema, o marxismo e a escola dos Annales. Disponível em: http://www.klepsidra.net/klepsidra22/black-tie.htm. Acesso em: 06 jun. 2008.
PRADO, D. de A. O teatro brasileiro moderno. São Paulo: Perspectiva, 1996.


Texto originalmente publicado na tese intitulada Brasil: nas melhores lojas do ramo, em livro e DVD, defendida pela autora deste artigo, em setembro de 2009, na Universidade Federal do Paraná.


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