Individualismo e reconfiguração da sociedade contemporânea (2)

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O filme 1,99, de Marcelo Masagão, celebra o aspecto e a função social da arte. Toda expressão artística está ligada ao contexto e ao público de seu tempo. Por essa razão, quanto menos anacronismos existirem entre a arte e seu tempo, maior será o efeito social. Transitando por uma via de mão dupla, 1,99 absorve e problematiza algumas questões da sociedade contemporânea, ao mesmo tempo em que propõe que o espectador reflita sobre elas. O resultado desse processo é a revisão/atualização do cinema e da sociedade a um só tempo.

O cinema, arte de amplo alcance, é um meio profícuo para proposições críticas a respeito da identidade e, mais especificamente, das relações de tensão entre o indivíduo e a sociedade. É com base, portanto, na função e no efeito da arte cinematográfica que este estudo dá relevância à arte fílmica. Contrariando os posicionamentos que atrelam qualquer manifestação artística ao entretenimento puro e simples, ou ao princípio da “arte pela arte”, a análise de 1,99 objetiva demonstrar a importância histórica da arte fílmica, que privilegia a representação de situações e comportamentos que delineam épocas, atitudes, modos de ser e de pensar, perfazendo momentos importantes na transformação (às vezes imperceptível) da sociedade e do indivíduo. Seguindo essa linha de pensamento, o filme de Marcelo Masagão (Fig. 1) será usado para esboçar um breve perfil da nossa sociedade, na era global, em que a tecnologia provoca a supressão do tempo, do espaço, exercendo grande influência nas relações entre o eu e o outro.

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Individualismo e reconfiguração da sociedade contemporânea (2) 1
Figura 1: Cartaz do filme 1, 99, de Marcelo Masagão.
Imagem disponível em: <http://br.web.img3.acsta.net>

Na era da globalização, a dissolução das fronteiras é uma ameaça à elite. O centro deixou de ser a fortaleza vigiada dos ricos, na qual os pobres restavam à margem. “Desterritorializante em seus efeitos” (HALL, 2003, p. 36), a globalização permite que as diferenças fiquem momentaneamente suspensas:

[…] as diferenças e as distinções culturais, que até então definiam a identidade, ficam reduzidas a uma espécie de língua franca internacional ou de moeda global, em termos das quais todas as tradições específicas e todas as diferentes identidades podem ser traduzidas. Este fenômeno é conhecido como “homogeneização cultural”. (HALL, 2001, p. 75-76, grifo no original)

Prejuízo para a elite e vantagem para as classes menos privilegiadas. Para tentar escapar da homogeneização, foram criados pequenos centros chamados shopping centers, artificiais, assépticos e confortáveis. O espaçoé uma nova fortaleza.

Com preços elevados e lojas de grife, o shopping center transforma-se no novo reduto da elite. O conforto do centro de antigamente, quando o espaço dos ricos era praticamente impenetrável, pode ser recuperado nesses espaços artificiais:

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Esses e outros “espaços proibidos” não servem a outro propósito senão transformar a extraterritorialidade da nova elite supralocal no isolamento corpóreo, material, em relação à localidade. […]. A extraterritorialidade das elites é garantida da forma mais material — o fato de serem fisicamente inacessíveis a qualquer um que não disponha de uma senha de entrada. (BAUMAN, 1999, p. 28, grifo no original)

A “senha de entrada” é “dinheiro” e o que sobra a quem não preenche esse requisito é a margem, novamente, ou seja, a exclusão do centro artificial. Alguns consideram essa afirmação muito radical, ainda mais quando mencionam a constatação de que shoppings não são espaços impenetráveis. De fato, não são. Aliás, na aparência, são espaços bastante democráticos. Mas de que adianta passar a fazer parte do “clube” e se sentir “um peixe fora d’água”, em meio a produtos de preços elevados, pelos quais não se pode pagar? Classificados como “templos do consumo”, os shoppings admitem apenas aqueles que têm como adquirir o que desejam. O desejo, nesse caso, não se resume à necessidade; pode ser apenas impulso, motivo suficiente para o consumo. Esse é o critério que seleciona aqueles que querem fazer parte desse novo centro (Fig. 2).

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Figura 2: Consumismo e poder de compra no filme 1,99.
Imagem disponível em: <http://2.bp.blogspot.com>

Analisando o capitalismo a partir da falsa liberdade de consumo, Marcelo Masagão, no filme 1,99 — o supermercado que vende palavras, sugere questionamentos importantes e que desmascaram algumas posturas atuais, mas muitas vezes interpretadas como “politicamente corretas”. No que se refere à desigualdade social, por exemplo, o computador e o telefone celular são apontados como instrumentos de inclusão, mas, no filme, ter um celular de nada adianta. Importam a classe e o poder aquisitivo. Do lado de fora do espaço privilegiado, que, no filme, recebe o nome de “1,99 — o império da nebulosa” (UM NOVE NOVE, 2004) e corresponde a um shopping center, várias pessoas, todas com celular, esperam, à porta do estabelecimento, o momento de serem escolhidas.

O cenário de fundo dessa gigantesca sala de espera ao ar livre é formado por uma pilha de pneus, cuja cor preta contrasta com o branco do ambiente requintado e asséptico do shopping. Todos esperam pela oportunidade de “estar dentro”, o que “produz uma verdadeira comunidade de crentes, unificados tanto pelos fins quanto pelos meios, tanto pelos valores que estimam quanto pela lógica de conduta que seguem” (BAUMAN, 2001, p. 117). Vez ou outra, algumas pessoas são admitidas no espaço tão cobiçado, mas a inclusão não os iguala aos demais consumidores. Eles são aceitos, mas para o trabalho e não para o consumo, afinal, para perpetuar a verticalidade do capitalismo, é preciso sempre ter em mente quem é quem e qual é a função de cada um, dentro do sistema.

É necessário ter dinheiro, posses e know-how suficientes para ser admitido como consumidor no reduto da elite. No filme de Marcelo Masagão, a referência explícita e indispensável ao poder do dinheiro está nos caixas eletrônicos dentro dos shoppings, a exemplo da realidade. Em uma cena, o diretor compara um simples saque a uma relação sexual. Um homem introduz o cartão na máquina e um rosto de mulher aparece na tela. O cartão é recusado e surge a mensagem: “Tente novamente” (UM NOVE NOVE, 2004). Nas sucessivas vezes em que o cliente passa o cartão, a máquina demonstra sentir um prazer crescente e o momento do orgasmo coincide com a liberação do dinheiro.

Dentro do shopping real e também dentro do espaço que serve de cenário a 1,99, tudo se resume ao consumo. Até os pensamentos dos personagens são apresentados em forma de anúncios classificados: “Homem tímido, que goste de beber vinho e beijar na boca” (UM NOVE NOVE, 2004). Talvez alguns possam dizer: “Espera aí, mas isso não está à venda.” Está sim. No supermercado do filme de Marcelo Masagão, é possível comprar “seu jantar”, “seu vizinho” e até “seus netos” (UM NOVE NOVE, 2004). Não há absurdo nisso. Comprar pessoas como se elas estivessem em vitrines ou prateleiras, na oferta do dia, pode parecer impossível, mas tudo se explica quando se responde à questão: “Quanto você pretende investir?” É a resposta a essa pergunta que vai definir onde alguém vai morar e, consequentemente, quem serão seus vizinhos. E, quanto aos netos que alguém pode ter, basta resolver em que colégio eles irão estudar, onde eles irão morar e qual será o círculo de amizades deles.

A importância do consumo para a sociedade e também a importância dada às marcas e ao que elas representam (Fig. 3) estão em uma roda chamada, no filme, de “Avaliação 360 graus” (UM NOVE NOVE, 2004). Nela, cada fase da vida de uma pessoa é representada por uma marca (de Johnson e Disney, passando por Nintendo, até chegar a Nokia e Jontex) e o resumo de todas elas, ao final, define a identidade da pessoa que se submete à análise. No final de 1,99, há um exemplo similar a esse, no qual a vida de uma mulher já idosa é radiografada e traduzida pelas marcas que ela consumiu, ao longo dos anos: “Band aid […], meias de nylon […], forno micro-ondas, código de barras, fibra ótica, Lego, Valium, lentes de contato, Elvis Presley, pílula […], controle remoto […]” (UM NOVE NOVE, 2004).

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Figura 3: O debate sobre a influência das marcas e dos slogans no filme 1,99.
Imagem disponível em: <https://4.bp.blogspot.com>.

A partir dos exemplos dados acima, constata-se que o filme relaciona intrinsecamente o consumo à construção da identidade. É certo que o impulso consumista restringe a escolha do sujeito a determinados produtos, feitos em escala industrial, para atender à demanda das massas, mas, apesar disso, é inegável a sensação de liberdade aparente, porque o que é comprado representa a chance de alcançar a identidade desejada:

[…] a cada visita a um ponto de compra os consumidores encontram todas as razões para se sentir como se estivessem […] no comando. Eles são os juízes, os críticos e os que escolhem. Eles podem, afinal, recusar fidelidade a qualquer das infinitas opções em exposição. Exceto à opção de escolher entre uma delas, isto é, essa opção que não parece ser opção. (BAUMAN, 1999, p. 92)

Mesmo sendo falsa, a liberdade de gastar está atrelada ao consumo. E é justamente tentando desmascarar essa ideia, bastante explorada pela linguagem publicitária, que 1,99 utiliza a escrita, nas caixas que compõem o cenário, para lembrar o público de slogans publicitários famosos. O filme é todo branco e os rótulos das embalagens estão escritos em preto. O resto é um silêncio absoluto. Na maior parte do tempo, há uma música minimalista ao fundo, acentuando a lentidão e a repetição, as quais definem, respectivamente, o movimento e o ato de comprar, ambos incessantes, em se tratando de consumismo.

Os consumidores do shopping de Marcelo Masagão não falam; apenas se movem, porque “o consumidor é uma pessoa em movimento e fadada a se mover sempre” (BAUMAN, 1999, p. 94). Todos, cada um com seu carrinho, observam os produtos atentamente. Alguns slogans são velhos conhecidos do público (Fig. 4): “Abuse e use”, “Mais por você” e “Você conhece, você confia” (UM NOVE NOVE, 2004). Além de produtos das marcas mais famosas do mercado, também estão à venda adjetivos simples, como “ágil” e “macio”. A lógica do consumo e do filme pode ser facilmente explicada com um slogan, “Tudo o que você quer ser”. Esse não aparece no filme, mas dá a noção exata da função psicológica e social desempenhada pelo ato de comprar. Para exemplificar essa relação, alguns consumidores acabam comprando produtos com inscrições como: “Você consegue”, “Eu valho a pena”, ou “Você é a única pessoa no mundo que pode fazer o que você faz” (UM NOVE NOVE, 2004). Tais exemplos revelam a fragilidade do homem contemporâneo e a lacuna que o consumismo é obrigado a preencher, em função da fraqueza humana.

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Figura 4: No filme 1,99, as prateleiras expõem slogans, em vez de produtos.
Imagem disponível em: <https://miro.medium.com>.

Entretanto, o tom de autoajuda dos produtos à venda não é o único indício do caos de incerteza e instabilidade que domina o mundo, hoje, e desencadeia o impulso de comprar. Outros sinais podem ser percebidos nas prateleiras de remédios, para doenças bastante específicas: “paranoia”, “obsessão”, “chocolatria”, “ansiedade”, etc. Todos são males contemporâneos e que completam o encadeamento que abrange distúrbios psicológicos, autoajuda e consumismo, relação em que o primeiro item é a doença que busca a “cura” nos outros dois elementos.

Aprofundando ainda mais a questão do consumo, o filme relativiza a liberdade do ato de comprar, quando, em uma cena, alguns consumidores decidem comprar produtos que trazem, em seus rótulos, os dizeres: “Único” e “Pense diferente” (UM NOVE NOVE, 2004). A série de caixas, todas iguais, umas ao lado das outras, é bastante significativa. No entanto, a falácia do produto e a vulnerabilidade do consumidor diante do óbvio são apresentadas de modo mais contundente com a reposição constante. No mesmo instante em que alguém pega um produto “único”, o vazio deixado na prateleira é imediatamente preenchido por outro, igualzinho ao produto recém-comprado. Evidente que esse exemplo exagera ao ironizar a eficácia dos produtos, que deveriam ser únicos e diferentes, mas são iguais a muitos outros. Porém, o diretor consegue demonstrar, com essa cena, que as opções disponíveis no mercado são impostas ao consumidor. A ilusão da escolha é comentada por Zygmunt Bauman, em Vida para consumo, e é considerada uma “variedade de processo civilizador”: “Essa nova maneira, praticada pela sociedade líquido-moderna de consumidores, provoca quase nenhuma dissidência, resistência ou revolta, graças ao expediente de apresentar o novo compromisso (o de escolher) como sendo a liberdade de escolha” (BAUMAN, 2008, p. 97, grifo no original).

Como na vida real, em 1,99, os consumidores, além de poderem “escolher” o produto desejado, podem escolher também a forma de pagamento. No balcão com a inscrição: “Escolha sua dívida” (UM NOVE NOVE, 2004), há frascos de todos os tamanhos, dependendo do prazo escolhido, que pode variar de 24 horas a quinze anos (Fig. 5). Escolhendo um pote, o comprador ganha um crachá com a porcentagem do juro correspondente ao modo de pagamento selecionado. Mas, como é o dinheiro que garante a inclusão no mundo do consumo, o filme também destina espaço àqueles que querem participar desse universo de sonhos de qualquer jeito. Em uma cena, na hora de pagar, o caixa acusa: “No credit” (UM NOVE NOVE, 2004) e, em outra, alguém rouba alguns produtos, mas é flagrado por uma câmera de vigilância. São as vantagens ou desvantagens do mundo contemporâneo, ajudando a regular as normas do consumo, ao definir quem tem acesso a ele e quem não tem.

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Figura 5: No filme 1,99, cada consumidor escolhe sua dívida.
Imagem disponível em: <https://lh3.googleusercontent.com>.

Mas que liberdade é essa, afinal? Em Modernidade líquida, Zygmunt Bauman analisa uma situação bem parecida àquela do filme de Masagão, que mostra alguém comprando um produto igual a tantos outros, na ilusão de estar comprando algo exclusivo:

Num arroubo de sinceridade […], um comercial de TV mostra uma multidão de mulheres com uma variedade de penteados e cores de cabelos, enquanto o narrador comenta: “Todas únicas; todas individuais; todas escolhem X” (X sendo a marca anunciada de condicionador). O utensílio produzido em massa é a ferramenta da variedade individual. A identidade — “única” e “individual” — só pode ser gravada na substância que todo o mundo compra e que só pode ser encontrada quando se compra. (BAUMAN, 2001, p. 98-99, grifo no original)

A lógica está em consumir uma marca e ser reconhecido por isso. De que adiantaria então, comprar algo exclusivo? Como o produto adquirido iria qualificar alguém, diante do outro? O filme 1,99 adverte: “O padrão que define é o mesmo que aprisiona” (UM NOVE NOVE, 2004). Porém, comprar, ou “escolher” uma identidade, segundo Bauman, corresponde à “busca incessante de deter ou tornar mais lento o fluxo, de solidificar o fluido, de dar forma ao disforme” (BAUMAN, 2001, p. 97).

Por isso, 1,99 é lento e silencioso. As palavras só importam depois de escritas. A forma fugidia da fala não interessa. A rapidez também não importa, porque é fluida, daí a lentidão excessiva. O consumo é a aquisição do que é material e a tentativa de objetificar tudo o que é humano ou abstrato. Desse modo, o ato de comprar é uma reação à dissolução do que era sólido e à fluidez e à transitoriedade, características próprias do mundo contemporâneo. Os produtos adquiridos têm a durabilidade que é rara hoje em dia, em quase tudo, sobretudo nas relações humanas.

No entanto, apesar da fragilidade das relações interpessoais, o outro continua sendo o principal motivo de alguém escolher essa ou aquela identidade. O jogo não é ser, mas parecer ser, para ser aceito: “‘Vamos às compras’ […] pelo tipo de imagem que gostaríamos de vestir e por modos de fazer com que os outros acreditem que somos o que vestimos; por maneiras de fazer novos amigos […]; pelos meios de extrair mais satisfação do amor […]” (BAUMAN, 2001, p. 87, grifo no original).

Em dado momento do filme, os ditames da moda são relacionados ao fetiche e ao consumo. Tal encadeamento dimensiona a manipulação do consumidor pelo mercado e por suas próprias fantasias, mostrando que, por trás do ato de comprar, está a avassaladora fraqueza do homem, que precisa do material, para alimentar-se espiritualmente. Isso é ressaltado, em 1,99, na cena em que um homem pega uma caixa sem inscrição nenhuma. Dentro dela há um rato branco e a pergunta: “Necessidade?” Em outra caixa, outro rato e outra pergunta: “Fetiche?” E, finalmente, em uma terceira caixa, uma cobra engole um rato. A única inscrição dentro da caixa não é mais uma pergunta, mas uma afirmação: “Necessidade de fetiche” (UM NOVE NOVE, 2004).

É isso que aproxima os frequentadores do grande supermercado do filme. O consumo dá a todos eles uma falsa, mas prazerosa, sensação de preenchimento e de poder. Além disso, ter a impressão de pertencer a uma comunidade é importante, ainda mais, que, nos dias de hoje, a individualidade está em alta. Como discutido no capítulo anterior, o conceito de comunidade sofre mudanças significativas. Na atmosfera amorfa dos shoppings, há espaço para as duas coisas. Dividir o mesmo espaço dá a sensação de fazer parte de uma comunidade, mas, como os laços são frouxos e quase inexistentes entre as pessoas que têm acesso a esse reduto, a individualidade também é respeitada.

A artificialidade dos shoppings também atende à demanda do mundo contemporâneo por mais segurança. A cidade lá fora, em vez de ser vista como aliada, é considerada uma ameaça, porque “construída originalmente em nome da segurança, para proteger de invasores mal intencionados os que moram intramuros, tornou-se em nossa época ‘associada mais com o perigo do que com a segurança’” (BAUMAN, 1999, p. 55, grifo no original). Em contrapartida, os shoppings centralizam cada vez mais serviços, como cinemas, lotéricas e salões de beleza, que, antes, eram disponíveis apenas fora desse espaço, na cidade, que foi rebaixada à periferia, com o advento do consumo, na época atual.

O isolamento e a segurança propiciados pelos shopping centers são mostrados no filme. Alguém abre uma porta e, lá embaixo, pode-se ver a cidade. De outra porta, pode-se ver a bolsa de valores e um dos consumidores enxerga-se trabalhando lá. Outras portas são abertas e todas demonstram estar convenientemente fechadas, pois protegem as pessoas, ao menos momentaneamente, do caos da metrópole. Atrás de uma delas, trânsito congestionado; atrás de outra, a redação de um jornal; e a última revela turistas fotografando a pobreza nacional. A conclusão é que os “templos do consumo” propiciam a fuga do real, porque “oferecem o que nenhuma ‘realidade real’ externa pode dar: o equilíbrio quase perfeito entre liberdade e segurança” (BAUMAN, 2001, p. 116, grifo no original) e porque têm “pouca ou nenhuma relação com o ritmo e o teor da vida diária que flui ‘fora dos portões’” (BAUMAN, 2001, p. 115, grifo no original).

Mas um shopping não é só feito de paz e conforto. Como um legítimo “não-lugar”, a exemplo de supermercados, aeroportos e estacionamentos, esse reduto apara as arestas das diferenças e nivela os frequentadores. A diferença pode entrar disfarçada, nesse espaço que a elite quer que lhe seja exclusivo, o que poderia causar choques culturais. No entanto, a ameaça pode vir de dentro do próprio grupo de consumidores habituais e de alto padrão. Nesse caso, é o consumo que gera o confronto, revelando que a individualidade pesa mais do que fazer parte de um grupo. Ter é poder e, na disputa pela posse, vale tudo. Em 1,99, há duas passagens em que a violência surge. Na primeira, dois homens disputam um garrafão de leite com a inscrição: “Porque nós somos mamíferos” (UM NOVE NOVE, 2004). Todos em volta assistem aos dois, que rolam pelo chão, para conseguir comprar o produto tão desejado. Na segunda cena, alguns carrinhos se encontram e os consumidores começam a brigar. Sons de ópera, em diferentes rotações, rompem o silêncio do filme e o tom vermelho de sangue colore o cenário, todo preto e branco.

No final, a violência, que tinha sido eficientemente reprimida, durante todo o tempo (pelo esquema de segurança, que contava, inclusive, com câmeras de vigilância), predomina. Como o próprio espaço, que parece um elefante branco no meio da cidade, de proporções gigantescas e desencaixado de todo o resto, é artificial a ideia de segurança permanente e de que toda e qualquer manifestação de violência pode ser, sempre, controlada. Nas últimas cenas do filme, a violência é encenada por vários personagens, que brincam de paint ball pelos corredores, colorindo-se, derrubando caixas e tingindo todo o cenário. As pessoas que passaram horas pelos corredores, como se fossem zumbis, acabam se consumindo e consumindo o outro.

Na sociedade contemporânea, não há comunidade, há um ser humano contra outro. O ambiente controlado, elitizado e organizado do shopping é uma farsa prestes a ser revelada a qualquer momento. A união aparente é necessária ao sujeito familiarizado com o conceito de “comunidade”, mas que hoje é vítima do individualismo, pela transitoriedade e artificialidade das relações.

O “centro de compras” abrange uma comunidade que não interage. Não há socialização nem mesmo colaboração que aproxime os consumidores. O que os une é apenas o interesse pela compra e é justamente essa finalidade que revela a solda frágil e aparente que forja o conceito de comunidade. No consumo prevalece a individualidade e é por essa razão e pelo fato de o shopping ser um espaço público e coletivo que o ato de comprar é escolhido para representar o principal traço identitário do sujeito, em pleno século XXI: “O consumo é uma atividade um tanto solitária (talvez até o arquétipo da solidão), mesmo quando, por acaso, é realizado na companhia de alguém” (BAUMAN, 2008, p. 101).

De modo a reforçar a alienação dos frequentadores do shopping, ofilme mostra algumas pessoas que assistem à tevê, sob um comando hipnótico: “Pensem que estão absorvendo paz, paz, paz […]” (UM NOVE NOVE, 2004). Essa cena descreve o mascaramento propiciado pelo consumo e pela publicidade, na tentativa de restabelecer o controle da situação, mas é inútil. Enquanto alguns são hipnotizados, os outros continuam a destruição, levando o consumo às últimas consequências. Isso fica claro, quando um homem, driblando o caos, chega a um dos círculos da “Avaliação 360 graus”. Depois da sucessão de marcas que resume a vida do personagem, ele explode, vira pó, adensando ainda mais a névoa que invade o cenário. Tudo vai pelos ares. Das caixas, sobram apenas as letras das inscrições dos rótulos. Uma chuva de letras encerra o filme. De consumidor, o homem virou produto. Mas e a caixa com a cobra engolindo o rato? Se não tivesse também sido destruída, quem sabe, depois de aberta, uma nova imagem fosse revelada: uma cobra engolindo o próprio rabo, com a inscrição “autoconsumo”.   

REFERÊNCIAS
BAUMAN, Z. Globalização. As conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
_____. Modernidade líquida.Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
_____. Vida para consumo.A transformação das pessoas em mercadorias.Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP & A, 2001.
_____. Da diáspora. Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003.
UM NOVE NOVE: o supermercado que vende palavras. Direção de Marcelo Masagão. Brasil: Agência Observatório e Bits Produções; Califórnia Filmes, 2004. 1 DVD (70 min); son.

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