Política e religiosidade em O pagador de promessas (parte 3)

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No filme de Anselmo Duarte, os costumes e as crenças populares recebem ênfase, com a inserção de cenas que não aparecem na peça de Dias Gomes. Elas mostram as mulatas lavando a escadaria da igreja e o assédio do povo a Zé do Burro, que passa a ser considerado um milagreiro. Essa cena, mais do que exemplo da fé desmedida do povo, serve para complicar a situação do protagonista, já que o padre considerava, desde o início, uma heresia o fato de Zé ter se submetido a um sacrifício similar ao de Cristo. De modo contundente, a peça opõe a lei de Deus e a dos homens. A lei divina, sempre relacionada à Igreja, recebe novo contorno e passa a ser a fé pura e simples. A religiosidade se sobrepõe às convenções sociais e às normas criadas pelos homens para a Igreja. No texto de Dias Gomes, a exigência é por um julgamento que não nivele todos os casos, mas que os particularize. Embora a Igreja simbolize Deus, é como se a Instituição, na crítica suscitada pela peça, tivesse banalizado os mandamentos divinos, pervertendo-os (Fig. 1).

Política e religiosidade em O pagador de Promessas (parte 3)
Figura 1: No filme, a subversão dos preceitos religiosos é representada de modo literal.
Imagem disponível em: https://i1.wp.com/cineplot.com.br/wp-content/uploads/2020/12/pagadordepromessas4.png?resize=708%2C524
LEIA PRIMEIRO TEXTO DESSA SÉRIE SOBRE O PAGADOR DE PROMESSAS:
LEIA TAMBÉM A PARTE 2 NESTE LINK!

Em suma, os sacerdotes, que deveriam ser os porta-vozes de Deus, são também culpados pela tragédia que se abate sobre Zé do Burro, cuja crença inabalável é um dos traços decisivos de seu caráter simples e ingênuo: “Em torno de Zé do Burro — herói ideal […] — o enredo espalha a malícia e a maldade de uma capital como Salvador […]” (PRADO, 1996, p. 90). Para comprovar como Zé do Burro foi envolvido pela malícia da cidade grande, basta analisar como o protagonista se relaciona com o Repórter, personagem extremamente manipulador e que, por isso, contribui para o destino trágico de Zé. Muito bem representada pelo Repórter, a imprensa aparece como segundo oponente de Zé do Burro (Fig. 2).

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Com o falso artifício de ajudá-lo a lutar por seu direito de cumprir a promessa feita, o jornalista se aproxima e vai, aos poucos, comandando a situação. Ele recorta e desvirtua o discurso do protagonista, dando, inclusive, um contorno político às palavras do personagem. Isso, claro, ganha tom de ameaça, ao ser publicado na primeira página do jornal, e, para que o comportamento de Zé seja reprimido, até a polícia é envolvida no caso:

REPÓRTER  Repartir o sítio… Diga-me, o senhor é a favor da reforma agrária?

ZÉ  (Não entende.) Reforma agrária? Que é isso?

REPÓRTER  É o que o senhor acaba de fazer em seu sítio. Redistribuição das terras entre os lavradores pobres.

[…]

REPÓRTER  Mas, e se todos os proprietários de terra fizessem o mesmo? […].

ZÉ  Ah, era muito bem feito. Cada um deve trabalhar o que é seu.

REPÓRTER (Anota.) É contra a exploração do homem pelo homem. O senhor pertence a algum partido político? (GOMES, 1997, p. 98-99)

Mais adiante, quando a matéria é publicada (Fig. 3), o guarda lê a manchete: “O novo Messias prega a revolução”, ao que Zé reage desta forma: “Revolução? […]. Eu bem achei que aquele camarada não era certo da bola…” (GOMES, 1997, p. 125-126). Zé não aprovou a notícia, mas também não teve a noção exata da complicação que aquilo poderia lhe trazer. A partir desse caráter revolucionário que o Repórter confere ao protagonista, é como se outro Zé do Burro fosse apresentado a toda a sociedade, afinal, as declarações publicadas são tomadas como verdade.

Política e religiosidade em O pagador de promessas (parte 3) 2
Figura 3: O Repórter transforma o descontrole de Zé do Burro em notícia de primeira página.
Imagem disponível em: https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcSXXwF_x-ZbBSF8OZbOUwYn8b5MNAav7e6SMw&usqp=CAU

A repercussão das notícias faz com que o Secreta procure Zé do Burro e o protagonista, em um ato de desespero, pensa em um meio de se fazer entender e diz:

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[…] tem de haver um jeito… (Desesperado.) A vontade que eu tenho é de jogar uma bomba… (Inicia um gesto, como se atirasse uma bomba contra a igreja, mas o braço se imobiliza no ar, ele percebe a heresia que ia proferir, deixa o braço cair e ergue os olhos para o céu.). (GOMES, 1997, p. 133)

No filme, essa rubrica é aproveitada para render mais uma foto publicada no jornal, acentuando o caráter revolucionário que a imprensa estava dando a Zé do Burro. Mais uma vez, o discurso de Zé é descontextualizado e usado contra ele próprio. O efeito disso é comentado por Joaquim Cardia Ghirotti:

Zé passa a ser um exemplo dos excluídos sociais e tem a ele agregado o ideal de injustiça e liberdade desejado pelo povo, é associado a “revolução” social, a “reforma agrária” e classificado como “comunista” sem ao menos ter ideia do que são estes conceitos tão alienígenas ao seu universo. […]  ele deixa de ser um indivíduo para tornar-se um ícone, maleável de acordo com os interesses de quem se aproxima e defende suas teses usando Zé como exemplo. Ele deixa de ser um homem com um propósito pessoal […]. Martirizado, ele torna-se o novo Cristo local, e através de sua morte é imortalizado como ícone, sem conseguir simplesmente pagar a sua promessa. (GHIROTTI, 2005)

O Repórter exerce maior domínio sobre Zé e Rosa, tentando fazê-los pensar que ele lhes oferece apenas conforto, mas, na verdade, seu único intento é prolongar o impasse. Rádio, barraca e colchão são levados a eles, como parte do plano já traçado pela mídia:

Bem, julgamos que um pouco de conforto durante esses dias não reduzirá o valor de sua promessa. Além disso, segunda-feira, depois da entrada triunfal na igreja, o senhor percorrerá a cidade em carro aberto, com batedores, num percurso que irá daqui até a redação do nosso jornal. De lá, irá ao Palácio do Governo, onde será recebido pelo governador. (GOMES, 1997, p. 173-174)

A essa fala do Repórter, Rosa se irrita e diz que ela e o marido resolveram voltar para casa ainda naquela noite, ao que ele responde: “Hoje?! Mas não dá tempo!… Não está nada preparado… O que é que a senhora pensa? Que é assim tão simples organizar uma promoção de venda?” (GOMES, 1997, p. 174, grifo nosso).

Na esfera de valores, esse tipo de “solidariedade” também aparece na atitude de outros personagens que fazem parte do mesmo grupo do Repórter, como é o caso de Bonitão e Galego. O vendeiro, especificamente, toma partido do Padre (Fig. 4), porque o impasse criado pela diferença de opinião entre Zé e o religioso faz aumentar o movimento em seu estabelecimento. Para agradecer pelos lucros, o comerciante oferece refeições de graça a Zé e Rosa.

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Figura 4: O Padre também se descontrola e exerce seu autoritarismo publicamente.
Imagem disponível em: https://lh3.googleusercontent.com/proxy/YRpVwqGf7-Mdw7DWtjPEjmMWz5_4Iuj2O39hJeYEPj9ZpIpDP1TFxaQSp8mwG-MKaGaF9jSyaHIPNhClrRsYcg-chywjUXMGKulsAw

No fim da história, Zé do Burro é vítima da cidade grande, que banaliza sua ingenuidade, suas crenças e subverte sua intenção e seu comportamento. À medida que a trajetória do protagonista evolui, mais perto ele fica da derrota. O maniqueísmo é evidente e representa o poder hegemônico e sua influência sobre os mais fracos. Zé do Burro foi martirizado e a violência ideológica de sua morte foi usada para denunciar a usura e a mesquinharia, metaforizadas nos personagens do padre e do repórter.    


REFERÊNCIAS

GHIROTTI, J. C. “O pagador de promessas” de Anselmo Duarte. Disponível em: <http://w ww.mnemocine.com.br/oficina/jguirottipagador.htm>.  Acesso em: 23. jul. 2005.

GOMES, D. O pagador de promessas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.

PRADO, D. de A. O teatro brasileiro moderno. São Paulo: Perspectiva, 1996.


Texto originalmente publicado na tese intitulada Brasil: nas melhores lojas do ramo, em livro e DVD, defendida pela autora deste artigo, em setembro de 2009, na Universidade Federal do Paraná.


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