Literatura – ao infinito e além
A literatura nunca conheceu fronteiras… Experiências, ideologias e universos sempre se misturaram, nessa e em outras artes. Entretanto, algumas áreas tomaram para si a tarefa de pensar sobre as relações e os cruzamentos típicos da narrativa literária, consolidando essas qualidades ainda mais. Isso fica claro quando espiamos as “situações que a Literatura Comparada modernamente contempla: o da contaminação, o da migração de temas, o da intertextualidade, o da interdisciplinaridade” (MASINA, 1995, p. 845).
Territórios e divisas podem até fazer parte da literatura, mas, diante do mundo globalizado, acabam desempenhando um caráter mais reativo do que ativo. Atualmente, não há como sustentar o purismo e o isolamento, afinal o fenômeno que foi anunciado ainda na década de 1990, hoje nos define completamente. Trata-se da glocalidade (Fig. 1), que incentiva o aspecto híbrido e os cruzamentos, por definir “um território marcado pelas travessias entre correntes opostas e frequentemente mescladas, com diversas temperaturas, salinidades, cores e sabores. Um território extraterritorial” (CANEVACCI, 1996, p. 25).
Evidentemente, a marca da diferença continua sendo fundamental para a questão das identidades. Porém, qualquer tipo de bairrismo ou regionalismo não tem recebido ênfase, neste momento. O diretor Jorge Furtado deixou isso muito claro em Orson Welles e o cinema wisconsinita, publicado em 2010. O texto apresenta uma lista com os vinte cineastas preferidos do autor e, em um dos itens, lemos: “Orson Welles. Cineasta wisconsinita. Nasceu em Kenosha, Wisconsin, em 6 de maio de 1915, morreu em Hollywood, 10 de outubro de 1985” (FURTADO, 2021). Depois que a lista termina, seguem-se duas perguntas e a respectiva resposta: “Qual a importância do estado (província, condado, região) de nascimento destes cineastas? Qual a importância da sede da produção ou das locações de seus filmes? Que eu saiba, nenhuma” (FURTADO, 2021). Sem dúvida, o exemplo dispensa explicações, porque indica de modo bem objetivo o poder e o alcance das artes. Portanto, seja no cinema, na literatura ou em qualquer outro discurso artístico, a meta é sempre criar espaços, fundindo gentes e costumes, em uma única narrativa (Fig. 2).
A ideia é borrar as fronteiras e, com sorte, até mesmo apagá-las. Por essa razão, a comparação é inevitável e, mesmo instintivamente, todos os leitores acabam se filiando a certo tipo de literatura comparada,
(…) que afirma a arbitrariedade dos limites e a importância de reconhecimento das zonas intervalares, das fronteiras e das passagens e ultrapassagens. (…). A região deixa de ser um espaço natural, com fronteiras naturais, pois é, antes de tudo, um espaço construído por decisão arbitrária, política, social, econômica, ou de outra ordem qualquer que não, necessariamente, cultural e literária. (BONIATTI, 2000, p.85-86)
A literatura expande horizontes, fazendo com que pensemos sobre novas ideias, analisando nuances e detalhes até então desconhecidos (Fig. 3), mas que podem mudar uma vida, uma opinião, um modo de ser… Na arte literária, tudo se junta para poder estar em sintonia ou em conflito: egos, alter egos, comportamentos, biografias e tradições. A literatura é, portanto, um tipo de espelho infiel, que distorce, aumenta e diminui, na tentativa de refletir épocas e pessoas, que também são imperfeitas e resultam de um amálgama gigantesco: “(…) o sujeito (…) é mediado nele mesmo por aquilo do que ele se separa: a conexão com todos os sujeitos” (ADORNO, 2009, p. 181).
Por meio da arte literária, aprimoramos questões de fundamental importância —ontem e hoje —, como empatia, alteridade, locais de fala e de escuta, entre outras. Aliás, conforme Buber, esses exercícios mentais são salutares, afinal, para que o homem conheça a si e ao outro,
(…) ele precisa primeiro — partindo de todos os penduricalhos de sua vida — chegar ao seu “eu”, ele precisa se encontrar, não o eu evidente do indivíduo egocêntrico, mas o “eu” profundo da pessoa que vive numa relação com o mundo. (BUBER, 2006, p. 34, ênfase no original)
Depois de termos experimentado o isolamento social e tantos outros tipos de restrição impostos pela pandemia de covid-19, a possibilidade de viver outros mundos e outras histórias (ainda que seja apenas na imaginação) nunca representou tanto alento e esperança. Devido a isso, a volta à vida normal deve ser repleta de toques, abraços, ou simples esbarros sem culpa e sem medo. Metaforicamente, existe uma literatura que é do mundo e que representa esse desejo de comunhão e unidade… Aliás, isso é anunciado a plenos pulmões, pelo nome que ela recebeu — Weltliterature. Na visão de Goethe, esse tipo de arte “traduz o ideal da unificação de todas as literaturas numa só e grande síntese, em que cada nação desempenhasse o seu papel num concerto universal” (WELLEK; WARREN, 2003, p. 57).
Embora seja considerado um clichê, outro tipo de extravasamento que se liga ao tema da literatura sem fronteiras é o fato de a leitura ser encarada como metáfora de vida, de mundos possíveis e de liberdade: “(…) mais densa e mais eloquente que a vida cotidiana, mas não radicalmente diferente, a literatura amplia o nosso universo, incita-nos a imaginar outras maneiras de concebê-lo e organizá-lo (…)” (TODOROV, 2009, p. 23).
Por fim, à luz da ecocrítica, que se relaciona com a teoria literária já há algumas décadas, e com base nos ensinamentos do líder indígena Ailton Krenak, vale lembrar que hoje a literatura também pode ser utilizada para realçar o valor da natureza e do homem como um ser natural entre muitos (Fig. 4).
Dessa forma, a arte literária esboça um novo território – mais vasto e ainda desconhecido por muitas pessoas. Não é à toa que, em novembro de 2021, a sessão de encerramento da FLIP — Festa Literária Internacional de Paraty propôs um debate sobre a natureza, a partir do tema “Nhe’éry, plantas e literatura” (FLIP, 2021). Sob essa perspectiva, o homem deixa de ser maior e melhor que os outros seres da natureza. Somos um entre muitos e ainda temos muito a aprender com os animais, com as flores e com o movimento do ar e das águas.
REFERÊNCIAS
ADORNO, T. W. Dialética negativa. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
BONIATTI, I. M. B. Literatura comparada. Memória e região. Caixas do Sul: EDUCS, 2000.
BUBER, M. O caminho do homem segundo o pensamento chassídico. São Paulo: Realizações, 2006.
CANEVACCI, M. Sincretismos: uma exploração das hibridações culturais. São Paulo: Studio Nobel, 1996.
FLIP. Flip: 19ª. Festa literária internacional de Paraty. Disponível em:
https://flip.org.br/2021/principal/nheery-plantas-e-literatura/. Acesso em: 14 dez. 2021.
FURTADO, J. Orson Welles e o cinema wisconsinita. Disponível em:
https://www.casacinepoa.com.br/o-blog/jorge-furtado/orson-welles-e-o-cinema-de-wisconsin.html. Acesso em: 14 dez. 2021.
MASINA, L. Fronteiras do cone sul: limites transcontextuais. Anais do Congresso brasileiro de literatura comparada, n. 3, Niterói, 1995, p. 839-846.
TODOROV, T. A literatura em perigo. 2. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.
WELLEK, R.; WARREN, A. Teoria da literatura e metodologia dos estudos literários. São Paulo: Martins Fontes, 2003.