Imagem, palavra e quadrinização na Net Art de Olia Lialina
Este ensaio analisa a obra intitulada My boyfriend came back from the war. O texto foi publicado em 1996, mas até hoje pode ser acessado a partir do link: <http://www.teleportacia.org/war/> (Fig. 1).
Na sequência mostrada, embora o signo verbal dê início ao texto, as imagens predominam. Além disso, a fragmentação e a simultaneidade instalam-se gradativamente: a tela é inteiriça, nos dois primeiros momentos; depois, essa estrutura dá lugar à duplicidade; e, finalmente, a tela divide-se em três partes. No que diz respeito às cores, o fundo preto reforça a incomunicabilidade do casal, representada não apenas pelo diálogo, mas também pela posição dos personagens (o homem está de costas para a mulher). Embora, no computador, existam meios de dar movimento às imagens, a autora, com exceção da janela que pulsa, escolhe usar imagens fixas. Sabendo que “esse tipo de imagem organiza-se muito mais sob a dominância do espaço do que do tempo” (SANTAELLA; NÖTH, 2009, p. 76), constata-se que essa fixidez acentua a falta de perspectiva, no que se refere ao futuro do casal protagonista. De fato, isso condiz com o percurso do texto, que mostra o casal na mesma pose, em todas as telas, com exceção da primeira.
Nessa cena que se repete, a estaticidade e a permanência servem de referência na caracterização do cenário e dos personagens. A janela é uma metonímia de um cômodo, supostamente um quarto, a julgar pelos diálogos e pelas frases mostradas, já na tela inicial do texto. Aliás, a janela também é o único item que ganha movimento pulsante, repetido centenas de vezes, enfatizando o contraste entre preto e branco, luz e sombra, de modo a simbolizar também as explosões de uma guerra. A janela tem um movimento independente do tempo da leitura. Ela pulsa durante o período em que o texto é lido, mas, se o leitor interromper a leitura por alguns minutos, a janela para de pulsar apenas depois de cumprir seu ciclo pré-programado de movimento. Por causa do efeito pulsante, que se inicia na tela 3, a janela engana o espectador. Nessa etapa, há três imagens e nenhum hiperlink visível. Como o movimento é o diferencial, a janela parece ser a opção mais coerente para o desenvolvimento do texto. Entretanto, isso não ocorre. Apenas o rosto feminino permite o surgimento de uma nova tela. Dessa forma, a função do espectador não se restringe ao clique. A sequência de tentativa e erro também faz parte do percurso de leitura.
Com base nesse procedimento de elaboração textual, que depende do computador e do acesso à Internet, a página impressa é transferida para a tela. Nessa transição, alguns elementos comuns permanecem, assim como as subdivisões e a combinação entre imagem e palavra. Entretanto, conforme Lucia Santaella e Winfried Nöth: “As variações de procedimento utilizadas, que já eram muitas, tendem agora a crescer com as facilidades […] e movimentos dinâmicos que os computadores […] oferecem aos novos designers da linguagem” (SANTAELLA; NÖTH, 2009, p. 71). Antônio Risério classifica esse novo tipo de expressão artística como poemática, designação específica para o “texto submetido a procedimentos específicos da nova tecnologia da computação gráfica” (RISÉRIO, 1998, p. 126). Associado à grande rede, o computador assume o “estatuto de metamídia” (SANTAELLA, 2019, p. 141), em que diversas mídias convergem, dando “origem a uma estética miscigenada” (SANTAELLA, 2019, p. 141).
Nesse sentido, voltemos ao close-up que aparece em um dos quadros da tela 3 (Fig. 1), pois esse efeito exemplifica certa proximidade da literatura com o leiaute das HQs e com a ampliação de uma imagem ou de um detalhe dela, com o uso da lente zoom, no cinema ou na fotografia. A partir desses exemplos intermidiáticos, constata-se que o cibertexto envolve não apenas a liberdade da arte literária em relação à palavra e ao livro impresso, mas também a convivência frequente com signos não verbais (Fig. 2), que não se resumem a uma interferência visual. Em vez disso, o cibertexto recorta, multiplica e pode até mesmo modificar a imagem, manipulando-a, de modo a adaptá-la perfeitamente ao sentido do texto e ao objetivo do autor. Portanto, “da linearidade própria do livro [impresso] passa-se a uma natureza diagramática, misturada a outros atributos visuais, como […] a distribuição diferenciada […] das palavras —, as quais […] se transformam […] em linguagem visual […]” (SANTAELLA, 2019, p. 99).
A estrutura proposta nas telas 11 e 12 aproxima-se da quadrinização típica da HQ. Porém, há diferenças bastante salutares. Analisando os frames, percebemos a ausência dos balões. Além disso, cada quadro privilegia um tipo de signo apenas: verbal ou não verbal. Ambos não são utilizados no mesmo subconjunto. Entretanto, os frames não são isolados. Cada um deles apresenta uma imagem ou palavras que, quando somadas aos demais elementos do texto, fazem sentido e delineiam uma possibilidade interpretativa. Sendo assim, a estrutura das telas 11 e 12 caracteriza uma dupla ruptura, porque contradiz o formato das HQs tradicionais e porque propõe uma reconfiguração do leiaute tradicional de página impressa. Já, no que diz respeito aos empréstimos que a net art faz, destacam-se dois aspectos: o uso dos quadros para delimitar o espaço, considerando que “emoldurar a ação não só define seu perímetro, mas estabelece a posição do leitor em relação à cena” (EISNER, 2010, p. 28); e a quadrinização como forma de organizar a história, afinal: “A representação dos elementos dentro do quadrinho, a disposição das imagens […] e a sua relação […] com as outras imagens da sequência são a ‘gramática’ básica a partir da qual se constrói a narrativa” (EISNER, 2010, p. 39, grifo do autor).
Na próxima publicação da coluna “Há arte em toda parte”, continuaremos discutindo sobre a net art, mas focalizando outros assuntos, como a falta de comunicação e o texto multiplex. Até lá!
REFERÊNCIAS
EISNER, Will. Quadrinhos e Arte Sequencial. São Paulo: WMF Martins, 2010.
LIALINA, Olia. My Boyfriend Came Back From the War. 1996. Disponível em: <http://www.teleportacia.org/war/war.html>. Acesso em: 26 ago. 2019.
RISÉRIO, Antônio. Ensaio Sobre o Texto Poético em Contexto Digital. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1998.
SANTAELLA, Lucia; NÖTH, Winfried. Imagem. Cognição, Semiótica, Mídia. São Paulo: Iluminuras, 2009.
_____. Estética & Semiótica. Curitiba: InterSaberes, 2019.
Este texto apresenta excertos do artigo “Fragmentação e simultaneidade na net art de Olia Lialina”, publicado na revista Scripta Uniandrade, v. 20, n. 3 (2022), p. 1-20.
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