DA PÁGINA À TELA: A POESIA CONCRETA NA ERA DIGITAL

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Verônica Daniel Kobs

Na literatura digital, o movimento e a sonoridade contribuem para acentuar as diferenças entre cibertextualidade e livro impresso. Entretanto, nas obras de Augusto de Campos, esses recursos deixam de ser apenas um efeito especial e sinalizam um diálogo efetivo entre a literatura e outras artes. 

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O poema “TVgrama 2”, publicado originalmente em 1979, ganha uma versão digital nos anos 1990 (https://www.youtube.com/watch?v=4CWZko9vJjo), a qual se destaca pelo acréscimo sonoro, resultando em um vocábulo sussurrado repetidamente. Contudo, nesse clip-poema (Fig. 1), a palavra em destaque é TV, que aparece inscrita em relevo, na cor azul, sobre o fundo branco da tela. Para fazer jus ao título do texto, os versos propõem anagramas, sugerindo palavras que se assemelham à sonoridade de TV, lançando mão de aliterações (repetição das consoantes t e v), assonâncias (repetição da vogal e) e paronomásias, como a que é usada neste verso: “SOBREAS TELHAS VELHAS” (Campos, 2010, grifo no original). Além disso, as sílabas de uma palavra frequentemente se associam ao vocábulo anterior ou posterior, alterando a estrutura morfológica e o sentido (“SOBREAS”).

DA PÁGINA À TELA: A POESIA CONCRETA NA ERA DIGITAL
Figura 1: Versão digital do poema “TVgrama 2”, de Augusto de Campos. 
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=4CWZko9vJjo

Em linhas alternadas, a sílaba “VI” simula pegadas de aves. Cruzando sons, palavras e imagens, esse clip-poema investe na simultaneidade, já que a escrita surge na tela ao mesmo tempo em que o termo TV é pronunciado dezenas de vezes. A fim de consolidar esse aspecto híbrido, Augusto de Campos explora a interculturalidade, ao utilizar o bem-te-vi, ave brasileira, e a cotovia, pássaro de origem europeia. Essa dualidade justifica-se pelo fato de os dois substantivos que designam as aves apresentarem as letras t e v, por correspondência à TV

Outro detalhe que consolida essa aproximação é a intertextualidade, tendo em vista que o poeta brasileiro empresta alguns versos do século XII, de autoria do trovador provençal Bernart de Ventadorn. Aliás, é por essa razão que as cotovias são “ENTREOU VIDAS APENAS” (Campos, 2010, grifo no original), enquanto os “BENTEVIS NAS ANTENAS” (Campos, 2010, grifo no original) ganham destaque, no clip-poema, porque aparecem no verso final e também na última cena, que consolida a presença da ave brasileira, voando e pousando nas antenas de TV. Analisando essa junção que se faz, entre os signos verbal e imagético, observa-se um caráter de redundância, já que a imagem representa de modo figurativo o mesmo sentido dado pela palavra: “A imagem é […] integrada ao texto. A relação texto-imagem se encontra aqui entre redundância e informatividade” (Santaella; Nöth, 1998, p. 54). Lúcia Santaella e Winfried Nöth (1998, p. 55) utilizam também os termos “complementaridade” e “determinação recíproca” para fazer referência a esse processo, que propõe uma expressão artística calcada na intersemioticidade: “A vantagem da complementaridade do texto com a imagem é especialmente observada no caso em que conteúdos de imagem e palavra utilizam os variados potenciais de expressão semióticos de ambas as mídias” (Santaella; Nöth, 1998, p. 55).

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O princípio norteador da Poesia Concreta, que conjuga os aspectos morfológico e semântico das palavras, é uma constante na obra de Augusto de Campos. No formato impresso, uma obra que utiliza esse cruzamento de modo bastante significativo é Colidouescapo (1971). Nesse livro-objeto, não só as palavras se decompõem. As páginas são dobradas e avulsas, permitindo que o público manuseie todas elas como se fossem cartões. Dessa forma, a leitura ganha um aspecto lúdico, instituindo uma espécie de jogo, no qual as palavras e o leitor são os protagonistas. 

Esse processo criativo pode ser demonstrado principalmente na associação “TV / “BEMTEVI”. Porém, há outros textos digitais que utilizam o mesmo recurso composicional. Em “Ininstante” (1999), disponível no link https://www.youtube.com/watch?v=uILQ-7qAGf8, as palavras surgem nas cores vermelho, amarelo, azul e verde sobre a tela preta (Fig. 2). A fim de representar, no vídeo, a rapidez de um instante, vários vocábulos aparecem na tela — divididos em quatro partes, mas sem obedecer ao padrão silábico gramatical. Essa estrutura peculiar possibilita que, trocando somente as duas primeiras letras, a palavra “in / st / an / te” dê lugar a “ba / st / an / te” e a “re / st / an / te” (Observatório da Literatura Digital Brasileira, 2021a, grifo nosso). Além disso, a associação entre morfologia e semântica é realçada ao final do clip-poema, quando o vocábulo infinito se sobrepõe à palavra-título, ininstante, oferecendo nova possibilidade semântica e gerando dúvida: afinal, ininstante significa um não instante (devido ao uso do prefixo in-, que pode indicar negação), ou ininstante é um instante infinito (= infinito + instante)?

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Figura 2: Versão digital do poema “Ininstante”, de Augusto de Campos. 
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=uILQ-7qAGf8

As cores fortes, em contraste com a tela preta, também são usadas em “Sem saída” (https://www.youtube.com/watch?v=BgxxZHisCzI), que se inicia com os seguintes versos: “A estrada é muito comprida / O caminho é sem saída” (Observatório da Literatura Digital Brasileira, 2021b). Como nos demais clip-poemas, o movimento reforça o significado das palavras, de modo que, nesse exemplo, a moldura da tela serve de obstáculo ou entrave, impedindo que os versos sigam adiante. Tentando buscar uma saída, os versos aparecem e desaparecem na tela, inscrevendo-se em todas as direções: da esquerda para a direita, da direita para a esquerda, de cima para baixo e de baixo para cima (Fig. 3). Em uma ocasião, a escrita é feita do fim para o começo: “As variações de procedimento […] tendem agora a crescer com as facilidades, enriquecimento qualitativo e movimentos dinâmicos que os computadores […] oferecem aos novos designers da linguagem” (Santaella; Nöth, 1998, p. 71).

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Figura 3: Versão digital do poema “Sem saída”, de Augusto de Campos. 
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=BgxxZHisCzI

 Essa dinamicidade do texto passa a sensação de dúvida, como se alguém não tivesse certeza sobre o caminho a seguir e precisasse testar todas as estradas viáveis. Portanto, os versos sinuosos, em movimento constante, comprovam que, de fato, não há saída. Inclusive, isso permite que o público se identifique com o eu-lírico, que, em determinado momento, constata: “Não posso ir mais adiante” (Observatório da Literatura Digital Brasileira, 2021b). Devido a isso, pode-se afirmar que a relação entre os signos verbal e imagético é de “coexistência” ou “relais”, em que “a palavra está inscrita na imagem” (Santaella; Nöth, 1998, p. 56). A consequência dessa estreita combinação é que “a atenção do observador é dirigida […] da imagem à palavra e da palavra à imagem” (Santaella; Nöth, 1998, p. 55).

Outra peculiaridade desse clip-poema é a escrita ao vivo, que se faz simultânea ao momento da leitura. Além disso, para fazer o leitor experimentar a dificuldade de achar uma saída, os versos são escritos em uma letra pouco legível, que se confunde com formas geométricas. Adensando ainda mais esse desafio, o ritmo do texto é bastante rápido, seguindo o padrão do clip-poema “Ininstante”. Aliás, a palheta de cores também é parecida, com exceção do ocre, do cor-de-rosa e de um tom de verde mais claro, afinal, em “Sem saída”, o colorido precisou ser intensificado, a fim de representar mais vielas e caminhos percorridos. Ao final, repetindo o procedimento adotado em outros clip-poemas, todos os versos inscrevem-se sobrepostos na tela, que se torna multicolorida, enquanto o leitor pode ouvir a declamação, também sobreposta, de cada verso-caminho que tentou percorrer. 

REFERÊNCIAS

CAMPOS, A. de. Augusto de Campos — TVgrama 2. Antennae of the race. 2010. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=4CWZko9vJjo>. Acesso em: 7 mai. 2023.

OBSERVATÓRIO DA LITERATURA DIGITAL BRASILEIRA. Ininstante — Augusto de Campos. 2021a. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=uILQ-7qAGf8>. Acesso em: 7 mai. 2023.

_____. Sem saída — Augusto de Campos. 2021b. Disponível em: 

SANTAELLA, L.; NÖTH, W. Imagem. Cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Iluminuras, 1998.

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Excerto do artigo “Clip-poemas de Augusto de Campos: Por uma poesia ainda mais concreta”, publicado na revista Todas as Letras, v. 25, n. 3, São Paulo, set.-dez. 2023, p. 1-16.

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