A aproximação das mídias pelo gênero Crossover
Em linhas gerais, o gênero crossover consolida-se pela utilização do recurso da intertextualidade, que admite “na sua composição diferentes gêneros, tanto literários (novelas intercaladas, peças líricas, poemas, sainetes dramáticos, etc.), como extraliterários (de costumes, retóricos, científicos, religiosos e outros)” (BAKHTIN, 2014, p. 124). O conceito foi desenvolvido posteriormente por Julia Kristeva, que o tratou como “cruzamento de superfícies textuais” ou “diálogo de diversas escrituras” (KRISTEVA, 2005, p. 66, grifo no original). Portanto, textualidades e universos distintos devem ser combinados, a exemplo do que foi feito no episódio 4 da quinta temporada do desenho animado Os Simpsons (Fig. 1), que transformou os integrantes da banda Ramones em personagens animados. Evidentemente, esse cruzamento de personagens e contextos improváveis é bem conhecido, por ser amplamente explorado nas produções que tratam de viagens no tempo. Entretanto, na maioria dos casos, esse tipo de crossover não alcança o mesmo resultado estético do desenho em análise. Isso ocorre porque a proposta de Os Simpsons vai além das fronteiras dos tradicionais cartoons, porque mistura realidade e ficção e porque propicia a inserção de outra arte, a música, em um dos episódios da animação.
Nas palavras de Sandra Beckett: “As obras de crossover frequentemente transgridem ou transcendem limites genéricos […]. A hibridização […] caracteriza grande parte da ficção crossover contemporânea” (BECKETT, 2010, p. 67, tradução nossa). Com base no exemplo dado, a “hibridização” fez uso de artes e linguagens distintas, exaltando a concretização dos personagens externos à animação, como recusa à simples referência. Por essa razão, esse procedimento reforça a transgressão habitual que caracteriza o estilo de Matt Groening, diretor de Os Simpsons.
Em outras obras, o crossover assume a função da complementaridade, como exemplifica o filme Uma cilada para Roger Rabbit (EUA, 1988), de Robert Zemeckis. Nessa produção, os personagens representados por atores e atrizes reais interagem com protagonistas de desenho animado, como Jessica Rabbit e Betty Boop (Fig. 2).
Dessa forma, o crossover realiza-se duplamente, no filme em questão: pela complementaridade entre personagens humanos e personagens de desenho animado; e pela combinação entre Jessica e Betty. A clássica Betty Boop foi resgatada da década de 1930 para fazer parte do elenco de um filme do final dos anos 1980. Evidentemente, essa associação teve bons motivos, entre eles o perfil e o figurino sexy da antecessora da instigante senhora Rabbit, pois Betty era dançarina de cabaré, acostumada à vida de artista e aos shows noturnos, assim como Jessica. Além disso, o uso dos recursos da animação cumpre um papel fundamental, já que, conforme Sandra Beckett: “A ‘literatura crossover’ (…) refere-se à ficção que passa de criança para adulto ou do público adulto para o infantil” (BECKETT, 2009, p. 4, grifo no original, tradução nossa). Em Uma cilada para Roger Rabbit, isso se concretiza a partir do efeito estético provocado pela montagem, que apresenta, na mesma cena, personagens criados por técnicas e mídias distintas. Enquanto os humanos seguiram desde o início a cartilha cinematográfica, Betty e Jessica sofreram uma transição, a qual exigiu uma recontextualização simultânea ao processo de assimilação dessas animações pela sétima arte.
Ainda no que se refere à evolução do crossover, o conceito de remidiação ganha espaço. Aproveitando os exemplos da complementaridade, as cenas apresentadas a seguir também utilizam os recursos da animação (Fig. 3). Trata-se de Scoobynatural, título mais do que adequado aosexto episódio da décima terceira temporada da série Supernatural, afinal o cruzamento já se insinua na morfologia desse termo composto. Obviamente, há fortes razões para esse crossover: o clima de mistério e os elementos sobrenaturais, já que Scooby e seus parceiros, assim como os irmãos Winchester, sempre estão atrás de fantasmas.
Nessas duas cenas, a remidiação segue uma via de mão dupla, porque, ao mesmo tempo em que o desenho animado da turma do Scooby-Doo é revisto e recontextualizado pela série de TV, os personagens de Sam e Dean Winchester são transformados, adotando o formato privilegiado nas animações. Essa troca é a chave para que a linguagem televisiva e outras linguagens artísticas repensem sobre suas próprias limitações e testem novas possibilidades: “O que há de novo nas novas mídias vem das formas específicas em que elas remodelam as mídias mais antigas e as maneiras pelas quais as mídias mais antigas se remodelam para responder aos desafios das novas mídias” (BOLTER; GRUSIN, 2000, p. 15, tradução nossa). Por essa razão, e objetivando a superação, Jay Bolter define a remidiação como “um processo de competição cultural entre […] tecnologias” (BOLTER, 2001, p. 23, tradução nossa).
Outro exemplo da fase da remidiação é o filme Frida (EUA, 2002), de Julie Taymor. A produção apresenta o mesmo intercâmbio artístico pontuado na análise acima, com a diferença de que, aqui, a comparação abrange outras artes: a pintura e o cinema (Figs. 4 e 5).
As artes envolvidas nesse tipo específico de crossover são essencialmente distintas. A pintura é espacial e o cinema, temporal. Ainda assim, é surpreendente a semelhança entre as cenas e o quadro O sonho, de Frida Kahlo. As cores, os acessórios e até mesmo a posição da atriz Salma Hayek na cama contribuem para esse efeito. Nesse processo, portanto, a arte cinematográfica faz uma “referência intermidiática” (RAJEWSKY, 2005, p. 52) à pintura, ao tentar recriar os elementos do quadro. No que se refere a essa categoria da intermidialidade, Irina Rajewsky faz menção à técnica que ela denomina “como se” (RAJEWSKY, 2005, p. 55) e que consiste na busca pela equivalência. Desse modo, cabe ao cinema produzir a cena como se ela fosse uma tela de Frida Kahlo, daí os altos índices de correspondência entre ambas as artes, no exemplo em análise. O resultado dessa parceria estética é visível, a partir da análise do fundo das cenas (Fig. 5). É evidente que o cinema possui inúmeros recursos capazes de igualar as nuances da cor azul, a fim de tornar esse plano homogêneo, com uma imagem mais limpa. Entretanto, isso eliminaria o aspecto pictórico, que é justamente o que assegura a relação das cenas selecionadas com o quadro de Frida Kahlo. Portanto, a escolha do acabamento imperfeito, em um fundo azul aquarelado, é propositada. Em suma, essa consciência das associações interartísticas que se sobressaem, no filme de Julie Taymor, é determinante para caracterizar a remidiação da pintura como um tipo de crossover. Conforme Denise Guimarães, essa relação é necessária — não apenas para a ampliação dos recursos estéticos, mas também para a renovação da arte:
[…] em grande parte da arte contemporânea, os recursos tecnológicos propiciam uma investigação criativa, tanto dos meios quanto dos processos, auxiliando a desenvolver visões mais adequadas ao mundo pós-moderno, uma vez que libertam os artistas do atrelamento a modelos e conceitos preexistentes. […] tal liberdade, inclusive, pode viabilizar interessantes trocas sígnicas entre arte e tecnologia. (GUIMARÃES, 2007, p. 39)
Mais uma vez, o contexto interartes possibilita a reinvenção, fazendo com que cada mídia experimente modos de expandir seus limites, reconfigurando sua expressão e redefinindo seu território, que se torna mais livre, com fronteiras solúveis e negociáveis.
No contexto digital, o crossover também se estabelece, em um caráter multimodal e hipermidiático. De modo a exemplificar essa tipologia, o filme Ela (EUA, 2013), de Spike Jonze, apresenta o cruzamento do cinema com duas interfaces (o computador e o smartphone) que permitem o acesso a plataformas diversas: jogos, sites informativos, redes sociais, canais de áudio e vídeo (Fig. 6). Em resumo, o enredo e o protagonista do filme são influenciados constantemente pelas mídias digitais, porque Theodore, o personagem masculino, faz uso da tecnologia para tentar aplacar o tédio e a solidão. A partir desse comportamento, ele compra e instala um sistema operacional, que se autodenomina Samantha. A interação deles é diária e evolui para um relacionamento amoroso. No entanto, pela imaterialidade de Samantha, é necessário que Theodore faça uso de uma máquina para acessá-la. Sendo assim, durante todo o filme, o protagonista contracena com o próprio computador ou com o smartphone, afinal é a partir desses aparelhos que Samantha se concretiza e adquire as capacidades de ouvir, ver, escrever, desenhar e falar.
Tecnicamente, Samantha pode ser considerada um sistema automático e complexo, já que “a inteligência artificial intervém, buscando simular, nas máquinas, operações mentais, perceptivas e motoras à imagem e semelhança do humano” (SANTAELLA, 2003, p. 241). Além disso, ela se torna cada dia mais próxima de Theodore, por causa da telepresença, uma tecnologia remota, que permite o recebimento de “feedback sensório suficiente” (SANTAELLA, 2003, p. 292)
Nas cenas apresentadas anteriormente, Theodore aparece em três interações: no primeiro frame, ele conversa com o sistema operacional, enquanto faz a instalação de Samantha; no segundo quadro, ele usa o smartphone para dar olhos e voz à Samantha, que manda Theodore fechar os olhos e decide guiá-lo, em tom de brincadeira, desviando-o das pessoas e dos objetos; contudo, na última cena, Theodore interage simultaneamente com o personagem de VGA (um holograma gerado pelos aparelhos de realidade virtual) e com Samantha, que está assistindo ao jogo. Desse modo, esses exemplos, somados ao personagem humano (Theodore), enfatizam o caráter híbrido, inerente ao ciberespaço e à linguagem digital, e assinalando a “interdependência dos elementos dentro de um ambiente em constante fluxo” (SANTAELLA, 2015).
Em certo sentido, essa pluralidade pode ser comparada ao caráter multimodal do hipertexto e à narrativa transmidiática:
[…] uma narrativa transmídia se apropria de diversos conceitos já conhecidos em diversas áreas […]. Nesse formato de narrativa não há nenhuma restrição ao tipo de mídia que será utilizada. Podem ser ações reais, virtuais, individuais e coletivas, tudo em separado ou conjuntamente. Tudo depende de como cada coisa, cada fragmento, será integrado à narrativa principal, ao meio principal, e aos demais meios (mídias) utilizadas. (NUNES, 2012, p. 90)
Sem dúvida, essa afirmação realça o caráter social das artes e das mídias e, nesse âmbito, a hibridação consolida-se como um tipo de representação necessário e adequado à sociedade atual.
Como se vê, o gênero crossover utiliza a intermidialidade em diferentes níveis e de modos distintos. Sendo assim, nesse tipo de texto prevalece a constituição social de todo e qualquer tipo de arte, no sentido estrito da intertextualidade, que ultrapassa o recurso literário e atinge o âmbito do escambo cultural e midiático, da recriação e da recontextualização, como costuma ocorrer na maioria dos processos comunicativos, abrangendo tanto o discurso artístico como o informativo:
As ficções crossover reconhecem a continuidade que conecta os leitores de todas as idades e reconhece que diferentes gerações compartilham experiências, conhecimentos, desejos e preocupações. Esse tipo de literatura oferece uma experiência de leitura compartilhada para todas as idades que une a geração em uma melhor compreensão do nosso mundo. (BECKETT, 2010, p. 75, tradução nossa)
Levando em consideração o conceito de Sandra Beckett e as inúmeras possibilidades de crossover demonstradas aqui, é possível ampliar este estudo, focalizando outros exemplos, de mídias e épocas distintas. A conexão que caracteriza esse tipo de arte, tangendo também a intermidialidade, está presente também nas HQs, na fotografia, na telenovela, no teatro, no hipertexto ou na música (como no caso específico do sample). Aliás, outra constatação importante diz respeito ao aspecto tecnológico das mídias envolvidas no processo: é certo que as novas tecnologias facilitam e às vezes até incentivam o crossover. Entretanto, o ambiente e os recursos digitais não são imprescindíveis para esse tipo de cruzamento. O crossover não obedece a limitações. Esse gênero independe de época, estilo, filiação artística ou aprimoramento tecnológico. As únicas características que ele de fato exige são: a criatividade; um vasto repertório cultural, por parte do autor e do público; e uma disposição incessante ao diálogo e aos empréstimos.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética. São Paulo: Hucitec, 2014.
BECKETT, S. Crossover fiction: global and historical perspectives. New York: Routledge, 2009.
_____. Crossover fiction: creating readers with stories that adress the big questions. In: TEIXEIRA, A. J. et al. Formar leitores para ler o mundo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010. p. 65-76.
BOLTER, J. D. Writing space: computers, hypertext and the remediation of print. New York: Routledge, 2001.
_____; GRUSIN, R. Remediation: understanding new media. Cambridge: MIT, 2000.
GUIMARÃES, D. A. D. Comunicação tecnoestética nas mídias audiovisuais. Porto Alegre: Sulina, 2007.
_____. Tipo/icono/grafia poética em cartazes de cinema. Curitiba: Appris, 2018.
KRISTEVA, J. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 2005.
NUNES, J. V. M. Narrativa transmídia: da literatura a outras mídias. Scripta Alumni, Curitiba, n. 7, p. 76-92, 2012.
RAJEWSKY, I. O. Intermediality, intertextuality and remediation: a literary perspective on intermediality. Intermédialtés/Intermedialities, Montreal, n. 6, p. 43-64, 2005.
SANTAELLA, L. Cultura e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.
_____. A poesia concreta como precursora da ciberpoesia. Disponível em: http://issuu.com/mimacarfer/docs/outubro. Acesso em: 28 abr. 2015.
Este texto é uma versão do ensaio publicado no Blog Interartes: Artes & Mídias, em janeiro de 2021.
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