Teatro, sociedade e o ataque às torres gêmeas: Ser ou não ser humano?

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Esta semana, o mundo inteiro relembra a tragédia que marcou nosso século, logo em seu primeiro ano de vida. Há 16 anos, no dia 11 de setembro de 2001, nosso futuro era definido de modo tão intenso que nem sequer conseguíamos acreditar no que todos os veículos de comunicação noticiavam ao mesmo tempo, e com o mesmo espírito de dúvida e estarrecimento. Naquela manhã, todas as TVs estavam ligadas e todas as pessoas passaram muito tempo em frente aos aparelhos, sem falar praticamente nada. Apenas olhávamos as imagens repetidas, tentando associá-las às legendas. Entendíamos o que estava escrito, ouvíamos a notícia, mas ninguém entendia como aquilo era possível. Mudávamos o canal e a história continuava, de modo incessante, e com detalhes mais cruéis, à medida que o tempo passava e novas notícias chegavam.

Fiquei sabendo do ataque terrorista na sala dos professores, no intervalo das aulas da manhã. Quando voltei à sala de aula, os alunos estavam agitados. Naquela época, o celular não era acessório indispensável, mas todos tinham ouvido comentários pelos corredores e queriam saber sobre o que tinha acontecido, de fato. Não houve mais aula (pelo menos não sobre gramática e língua portuguesa). Falamos sobre possíveis desdobramentos da notícia, credibilidade das informações, variações do tema, linguagem sensacionalista, política, insegurança e outros assuntos que não discutíamos habitualmente, mas que, naquele momento, eram cruciais.

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Por tais motivos, hoje, 16 anos depois da tragédia, escolhi retomar a resenha que escrevi, depois de ter visto a peça Gargólios, de Gerald Thomas. O espetáculo foi apresentado no Festival de Teatro de Curitiba, no dia 1 de abril de 2012, quase onze anos após o ataque:

 

[Início da resenha]

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Gelo seco. Névoa. Ruínas. Uma mulher (morta?). Sangue jorrando. Heróis impotentes.

É assim que Gerald Thomas e London Dry Opera Company apresentaram Gargólios. O texto reconstrói a peça Throats, para se adaptar à nossa cultura e ao nosso público.

Work in progress. 

Um divã. Vários “heróis”. Freud. Dramas pessoais. Uma mulher ensanguentada ao fundo. Estrondos. Toque de recolher. Cidade vazia.

 

Teatro, sociedade e o ataque às torres gêmeas: Ser ou não ser humano?

 

 

A peça é uma cena-fragmento da tragédia norte-americana mundial de 11 de setembro de 2001. Novo século. O fim de uma era. A queda do símbolo do poder Ocidental. O fato de Nova Iorque ter sido o cenário do ataque terrorista nos diz muita coisa. Lá havia pessoas de todas as partes do mundo. Estávamos todos devidamente representados e experimentamos o horror da catástrofe, ainda que por amostragem. 

Memória. Espetáculo-mosaico. Um estudo sociológico. Poder. Política. Religião. Comportamento humano. Sociedade contemporânea.

Várias línguas, com o predomínio do inglês, recriam o cosmopolitismo de Nova Iorque. No toque de um imenso sino invisível, a ambiguidade sinistra: o divino e o anúncio do fim dos tempos. Gerald Thomas é deus, padre e pastor… Além de autor e diretor, foi voluntário no resgate dos corpos das vítimas no episódio do World Trade Center e, no espetáculo, desenhou cenário, figurino, fez gravações em off, participou de pequenos diálogos com os atores e foi também espectador de sua própria história, no canto do palco, próximo à plateia, de onde também executava riffs de guitarra. 

Um mordomo encharcado de sangue. Destruição. Heróis que não podem voar. Um parto na rua, em meio à multidão. Insensibilidade e pressa. Vinho: sangue de Cristo e dos homens.

Não existem mais superpoderes. O inimigo do mundo é o próprio mundo. E a peça acaba em “festa”, para combinar com o paradoxo do mundo conectado à internet e desconectado de si mesmo. Boa comida invisível, sangue jorrando do teto, do corpo de um soldado abatido em combate, e vinho bem visível, transbordando nos copos, da boca dos personagens que golfavam sobre o palco… Vinho de boas safras, com datas de grandes guerras e revoluções do passado, do presente e do futuro. E Gerald Thomas, brincando de Deus, profetizou pequenos duelos constantes e grandes tragédias, no ano de 2030, ou 2032… 2025… Já não me lembro. 

Incomunicabilidade. Ironia do nosso tempo. No lugar da fala, riffs de guitarra. Egoísmo. Indiferença. Impossibilidade. Nostalgia de outros (bons) tempos, em que sentíamos falta do futuro.

Só me lembro da sensação de peso sobre os ombros, durante toda a peça, de um horror prolongado, mesmo sabendo que a realidade tinha sido pior do que aquela encenação e de tudo o que eu já tinha vivido até aquele momento. Medo dos outros, medo da morte. Senti a morte (das grandes catástrofes, dos jornais, dos programas policiais) mais próxima, presente, de modo irremediável. A indiferença me ligava àqueles personagens desprezíveis, que representavam as pessoas desprezíveis da nossa vida real. Mesmo não querendo acreditar naquele retrato da sociedade contemporânea, eu não tinha como negar: É tudo verdade. Vivemos e morremos no fim dos tempos. “O mar não tá pra peixe.” 

World in regress.

 

[Fim da resenha].

 

Assista à peça, acessando o link: https://vimeo.com/40318274

 

Em Gargólios, Gerald Thomas faz uso de alguns preceitos que consolidaram o Teatro da Crueldade, idealizado por Artaud, na década de 1920. No manifesto artaudiano, vários trechos demonstram essa semelhança. A lembrança da tragédia, na peça, por exemplo, associa-se ao fato de Artaud considerar o teatro “sanguinário e desumano […], por manifestar e ancorar de modo inesquecível em nós a idéia de um conflito eterno e de um espasmo em que a vida é cortada a cada minuto” (ARTAUD, 1984, p. 105). Outro ponto comum refere-se à atualidade, pois, em seu manifesto, Artaud afirma: “Não representaremos peças escritas, mas em torno de temas, fatos ou obras comuns” (ARTAUD, 1984, p. 112). Na parte estética, de execução do espetáculo, destacam-se as mudanças abruptas, o uso do gelo seco e a relação com a música. E, para terminar esse breve comparativo, resta a crueldade em si: “Sem um elemento de crueldade na base de todo espetáculo, o teatro não é possível. No estado de degenerescência em que nos encontramos, é através da pele que faremos a metafísica entrar nos espíritos” (ARTAUD, 1984, p. 114).

Nesses aspectos, arte, política e sociedade aparecem conectados, perpetuando um ciclo já estabelecido no senso comum: a sociedade auxilia na produção da arte e a arte representa e questiona a sociedade. Com base nessa associação, e para ampliar um pouco mais o repertório sobre discursos artísticos que retomam o tema do ataque às torres gêmeas, indico o final do filme Perseguindo Abbott (EUA, 2015 e cujo título original é Survivor), de James McTeigue. Antes de subirem os créditos, o longa informa o número alarmante de ataques terroristas que o servi secreto norte-americano conseguiu evitar, nos últimos anos. Essa informação é real e periodicamente é divulgada em sites de notícias, como demonstra o trecho a seguir: “Os programas de vigilância que o governo dos Estados Unidos utiliza para registrar chamadas telefônicas e dados de usuários da internet evitaram mais de 50 ataques terroristas em 20 países após os atentados de 11 de setembro, incluído um contra a Bolsa de Valores de Nova York. A revelação foi feita pelo diretor da Agência de Segurança Nacional (NSA) dos Estados Unidos, o general Keith Alexander” (TERRA, 2017).

 

REFERÊNCIAS

ARTAUD, A. O teatro da crueldade (Primeiro manifesto). In: _____. O teatro e seu duplo. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1984, p. 101-116.

PERSEGUINDO ABBOTT. Direção de James McTeigue. EUA: Millenium Films; Alchemy, 2015. 1 DVD (96 min); son.; 12 mm.

TERRA. NSA: EUA evitaram mais de 50 ataques terroristas após 11 de setembro. Disponível em:

<https://www.terra.com.br/noticias/mundo/estados-unidos/nsa-eua-evitaram-mais-de-50-ataques-terroristas-apos-11-de-setembro,75cb30b5c455f310VgnCLD2000000dc6eb0aRCRD.html>. Acesso em: 9 set. 2017.

THOMAS, G. Gargólios. Disponível em: <https://vimeo.com/40318274>. Acesso em: 9 set. 2017.

 

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