Uma leitura das cores
Uma tarde e dois filmes. Primeiro, Julieta, de Pedro Almodóvar. Depois, Life, de Anton Corbijn. Duas experiências intensas. Histórias profundas, fascinantes e reflexivas. Entretanto, quando escolhi os dois filmes do dia, não esperava encontrar tantas coincidências entre eles. Na metade de Life, percebi a maior delas: a definição das cores e o forte aspecto semântico de todo aquele cromatismo, que, pela ordem dos filmes, começou com cores fortes e quentes e terminou com as cores mais suaves e frias; todas, porém, em perfeita sintonia com os enredos. Para tentar passar a mesma sensação dessa diferença e do papel fundamental das cores, nas duas produções, optei por usar aqui a mesma ordem que experimentei na sala de cinema.
Comecemos, então, por Julieta. Do início ao fim, a história reflete sua intensidade nas cores utilizadas, tanto no cenário como no figurino, como costuma ocorrer em todos os filmes de Almodóvar. O amarelo representa o esplendor do verão, mas também anuncia o outono, em toda a sua sobriedade, relacionando-se ao “declínio”, à “velhice” e à “morte” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 40). Além disso, como o alaranjado, o amarelo é associado à infidelidade e esse traço define a relação entre Julieta (a mãe) e Antía (a filha), que sai de casa e fica mais de uma década sem dar notícias à mãe. Depois da morte do pai, passam a viver apenas as duas, em um apartamento. Antía, ressentida e culpando secretamente a mãe, espera completar dezoito anos e usa um retiro como pretexto para fugir.
Outra cor bastante utilizada no filme é o castanho, de conotação muito negativa, porque “faz lembrar […] a folha morta, o outono, a tristeza” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 198), reforçando o sentimento de Julieta, sempre à espera de notícias de Antía, ainda que sem conhecer, nem compreender as razões da filha. Por fim, o vermelho, “matriarcal, uterino”, “a cor do sangue” e “da união” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 944-946), completa o conjunto de cores matizadas que reforça as tragédias sucessivas que afetam a família de Julieta. Na cultura japonesa, “a cor […] é usada quase que exclusivamente pelas mulheres” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 946). Quando raramente é usada por homens, aparece na roupa dos recrutas japoneses, que “usam um cinto vermelho no dia de sua partida” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 946). Essa simbologia oriental serve para enfatizar a partida de Antía e o fato de as personagens principais do filme serem mulheres. Além disso, o vermelho sugere duplicidade: “[…] ação e paixão, libertação e opressão” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 946). A filha age instintivamente, movida pela rebeldia adolescente, deseja e alcança sua liberdade, mas à custa da opressão de Julieta.
Em Life, biografia de James Dean dirigida por Anton Corbijn, a tragédia permanece, mas é caracterizada por outro jogo cromático, de modo a estabelecer estreita relação com a morte prematura do ator e com o objetivo das fotos que Dennis Stock publica na revista Life (tema central da história) e, por extensão, do filme: mostrar James Dean além do estrelato, privilegiando sua simplicidade, suas inquietações sobre a fama e a carreira de sucesso e seu lado familiar. Para esse projeto, Corbijn trabalhou com uma predominância de cores frias, com destaque às cores azul (a mais importante, razão pela qual predomina no cartaz do filme), verde e cinza.
Diferente de Julieta, Life utiliza as cores principais apenas nos cenários. Primeiramente, analisemos a cor verde, definida, em sua simbologia, por seu “valor médio, […] entre o calor e o frio, o alto e o baixo, equidistante do azul celeste e do vermelho infernal – ambos absolutos e inacessíveis – é uma cor tranquilizadora, refrescante, humana” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 938-939). Nesse aspecto, pode-se enfatizar a conformidade do verde com o destino de James Dean, morto em um acidente de carro, no momento em que ascendia em sua carreira, contradição também sinalizada pela cor, que “conserva um caráter estranho e complexo, que provém da sua polaridade dupla: o verde do broto e o verde do mofo, a vida e a morte. É a imagem das profundezas e do destino” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 943). Além disso, o verde simboliza “imortalidade”, “juventude eterna” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 939-940) e o elo com a mãe e com ambientes bucólicos: “A expressão ficar verde, nascida da hipertensão provocada pela vida urbana, também exprime a necessidade de uma volta periódica a um ambiente natural, o que faz do campo um substituto da mãe” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 939, ênfase no original). De fato, o filme mostra que Dean só aceita fazer as fotos com Dennis, depois de convencer o fotógrafo a passar uma breve temporada no interior, em Indiana, na fazenda onde Jimmy foi criado pelos tios. Nessa viagem, o protagonista também revela a Dennis seu forte vínculo com a mãe.
De modo a reforçar a simbologia da cor verde, o uso do cinza sugere “[…] uma função mágica, ligada à germinação e ao retorno cíclico da vida manifestada”, razão pela qual essa cor é associada à Fênix mitológica (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 248). Tons acinzentados representam “um valor residual: aquilo que resta após a extinção” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 247). Por isso, essa cor dá a James Dean uma espécie de sobrevida, em consonância com o mito da rebeldia, representado pelo ator.
Já o azul, conforme Chevalier e Gheerbrant (2009), é a cor mais profunda que existe e simboliza pureza, imaterialidade, frieza e um imenso vazio. É também a cor da “verdade” e da “morte” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 108).
A cor azul se assemelha ao cinza, pois ambos correspondem ao yang. Porém, a simbologia desse elemento é avessa a alguns significados geralmente atribuídos aos tons azulados. Yang representa “o Sol, o calor, a atividade, o elemento masculino, o número ímpar” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 490), características, aliás, mencionadas por Stewart Stern, em uma carta que enviou a Marcus e Ortense Winslow, tios de James Dean, no ano de 1955, alguns dias depois da morte do ator. Stern era amigo de Dean, escreveu o roteiro de Juventude transviada e definiu James como singular, “luminoso” e “irrequieto” (STERN, 2014, p. 144-145). Nessa oposição entre azul e yang, entretanto, percebe-se estreita conformidade com a contrariedade expressada pelo verde. Contudo, essa relação complementar das cores não aparece apenas nessas correspondências. Chevalier e Gheerbrant mencionam que tal junção pode ser encontrada até mesmo em algumas línguas célticas, que “não têm um termo específico para designar a cor azul (o vocábulo glas, tanto em bretão, como em gaélico e em irlandês, significa azul ou verde, ou até mesmo cinzento, conforme o contexto; […])” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 109).
Voltando à comparação entre os filmes, apesar das semelhanças, cujo destaque cabe ao aspecto cromático funcional das duas produções, que utilizam as cores para fins estéticos e de conteúdo, há uma diferença bastante salutar: em Julieta, de Almodóvar, as cores têm uma função orgânica, proliferando-se em várias cenas (no cenário, no figurino e nos acessórios); já, em Life, de Corbijn, as cores são usadas nas paredes, mantendo-se ao fundo ou nas laterais das cenas, sem nunca invadir o centro. Esses diferentes usos caracterizam os estilos dos dois diretores. Entretanto, não deixam de desempenhar função primordial no aspecto semântico das duas histórias, ressaltando as ações e os sentimentos dos personagens.
Referências:
CHEVALIER, J; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. 24 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.
JULIETA. Direção de Pedro Almodóvar. Espanha: El Deseo; Universal Pictures, 2016. 1 DVD (100 min); son.
LIFE. Um retrato de James Dean. Direção de Anton Corbijn. Eua, Reino Unido, Canadá, Alemanha, Austrália: See-Saw Films, Barry Films e First Generation Films; Paris Films, 2016. 1 DVD (112 min); son.
STERN, S. Carta 051. Ele está aqui, vivo, vívido e inesquecível para sempre. In: USHER, S. (Org.). Cartas extraordinárias. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 144-145.