Carnaval? Zombie Walk Experience
A Zombie Walk já é uma tradição em Curitiba. No domingo de Carnaval, várias pessoas se reúnem para a caminhada que é uma verdadeira celebração da estética do macabro. Grupos de amigos, famílias inteiras, pais com filhos pequenos chegam para a festa simulando um olho roxo, um corte profundo na cabeça, sangramentos causados por golpes de faca, feridas, ossos expostos, peles se desgrudando, cortes no pescoço e nos pulsos… A “brincadeira” é inusitada, claro, mas passa a exigir mais atenção quando essa representação da morte em vida torna-se uma constante na sociedade. Não estamos falando apenas de zumbis. Vampiros também contam, afinal, eles saem de seus túmulos à noite para sugar o sangue dos vivos. Por isso eles são como os zumbis, o que torna o panorama atual ainda mais instigante.
É mesmo impossível não relacionar a marcha dos zumbis à invasão macabra provocada pela estética New Weird. Começamos a lista citando o perfil lânguido e romântico do vampiro da saga Crepúsculo. Aliás, no cinema, até Abraham Lincoln transformou-se em caçador de vampiros. Na literatura, lembramos os livros que fazem releituras “mórbidas” (no bom sentido) de verdadeiros clássicos: A escrava Isaura e o vampiro, de Jovane Nunes; Memórias desmortas de Brás Cubas, de Pedro Vieira; e Orgulho e preconceito e zumbis, de Seth Grahame-Smith. Na TV, o destaque vai para as séries The walking dead e True blood. Na moda, as caveiras foram as primeiras a receberem destaque: estampas reluzentes em camisetas, anéis, brincos, lenços… Mas é só passear por alguns sites de moda para ver outras surpresas, como sapatilhas inspiradas em zumbis ou estampas que imitam cortes, cicatrizes e hemorragias. Inclusive, em 2014, na Semana de Moda de Nova Iorque, a grife de Marc Jacobs levou zumbis para a passarela, para encerrar o desfile.
Até no Carnaval de Curitiba os zumbis foram campeões. A escola Mocidade Azul foi a vencedora, em 2014, depois de levar para a avenida bruxas, mortos-vivos e fantasmas. Em matéria intitulada Mocidade “aterrorizou” e é campeã do carnaval de Curitiba, Amanda Audi, Diego Antonelli e Diego Ribeiro citam a letra do samba-enredo que embalou o desfile da escola: “Bruxa ao invés de princesa / Fantasma ou bicho / Posso ser o que quiser / Zumbi, vampiro ou dragão / (…) Eu vou botar fogo no mato / Atirar o pau no gato / Torcer pelo lobo mau / Pichar seu muro / Deixar tudo no escuro / Lutar por meu ideal / Exorcizando a tristeza / Pois em tudo há beleza / De cara feia eu vou fazer bonito / Irreverente é minha natureza / (…) Lá vem meu povo brincando de ser malvado / Num delírio sem igual / Veja o lado bom do mau / É a Mocidade infernizando o carnaval” (AUDI; ANTONELLI; RIBEIRO, 2014).
Para terminar a lista, nada melhor do que mencionar como a estética do macabro hoje está influenciando também as crianças. Refiro-me ao fenômeno Monster High. As bonecas têm um novo padrão. São monstras, embora também sejam inteligentes, descoladas e sedutoras. Evidente que obedecendo a um novo paradigma, o mercado lança novos tipos de brinquedos e também influencia o comportamento das meninas, que hoje têm de ter boa dose de humor negro para colocar a boneca para dormir em um caixão, para vesti-la de preto ou de roxo e para ser fã de personagens com perfis tão terríveis. Por exemplo, uma das garotas Monster High, Elissabat (cujo nome, aliás, já denuncia seu lado morcego), tem predileção por comer “laranjas sangrentas” (MONSTER HIGH, 2014).
E a estranha moda tem, ainda, muitos outros exemplos divertidos. Vou citar mais alguns, pois acompanho de perto essa tendência, registrando tudo o que leio, vejo ou ouço sobre zumbis. Em 2017, na abertura do Emmy Awards 2017, o apresentador fez um vídeo, em que passeava pelos sets de filmagem de Hollywood, enquanto esbarrava em vários personagens; entre eles, um zumbi. Os zumbis ganharam espaço até mesmo em outra moda recente, os livros para colorir. Surpreendentemente, até as princesas da Disney e os jogadores de diversos times norte-americanos, como o Florida Gators, ganharam uma versão de horror:
Os exemplos, de fato, multiplicam-se. Uma visita rápida ao site <www.jogosjogos.com>, no segundo semestre de 2017, revelou que existem 318 jogos eletrônicos com personagens zumbis. Atualmente, há, inclusive, bares que seguem essa temática mórbida. No site <www.megacurioso.com.br>, encontrei o bar Donny Dirk’s Zombie Den, em Minneapolis (EUA), com decoração e cardápio associados aos filmes de horror e ao apocalipse zumbi.
Certo, mas essa lista foi apenas para comprovar que os zumbis são criaturas extremamente contemporâneas. Resta-nos, agora, formular algumas hipóteses para tentar explicar essa constatação. A primeira delas (e talvez também a mais óbvia) diz respeito ao Carnaval. Não é simples coincidência o fato de a marcha dos zumbis ser realizada todos os anos, em Curitiba, justamente nesse período. O próprio termo “carnavalização” nos dá uma dica importante, pois sugere inversão e subversão da ordem. Além do mais, a simples ideia de vestir uma fantasia serve de recurso para essa transformação total, em que os vivos tentam parecer mortos e uma festa da alegria vira palco de cenas trágicas e sangrentas. Outra hipótese é que o evento serve como uma forma segura de lidar com nossos medos. Em uma sociedade cada vez mais violenta e insegura, vivemos tentando evitar todo tipo de perigo. Podemos, então, pensar que nos aproximando do que tememos podemos tentar lidar melhor com a situação. Aliás, esse antagonismo também combina com o Carnaval e com o fato de sermos brasileiros (porque, no mundo todo, somos conhecidos como o povo que ri e faz piada dos próprios problemas).
Pensando bem, a compreensão do fenômeno Zombie Walk pode estar até mesmo no tabu da morte e da vida após a morte. Os zumbis, todos sabem, são mortos-vivos e essa característica torna possível que alguém experimente golpes cruéis, seja dado como morto, mas continue bem vivo, ainda que se arrastando e balbuciando coisas que os outros não entendem. Experimentar a violência, a morte e sair “ileso” é tentar forjar a descoberta de um dos grandes mistérios do mundo: Há, afinal, vida após a morte? Alguns podem até pensar: “E tem graça brincar com uma coisa dessas?” Justamente. Achar graça na morte, nas cenas bizarras e violentas de crimes hediondos, ou nas ataduras e maquiagens de efeito fake e grotesco, de zumbis também falsos, é uma necessidade contemporânea. É preciso esquecer o peso das coisas: da realidade, do medo de morrer, da insegurança, do horror que os telejornais mostram todos os dias… Nesse sentido, o evento serve ao escapismo. Nada melhor que a fantasia para tentar fugir da realidade. Conforme notícia publicada pela Globo, em 2013, uma pesquisadora norte-americana chegou a relacionar a marcha dos zumbis (que iniciou em Toronto, no ano de 2003) à infelicidade social: “É uma alegoria óbvia. Sentimos que, de certa maneira, estamos mortos” (GLOBO, 2014). No mesmo texto, é enfatizada a abrangência desse fenômeno mundial: “Desde 2012, caminhadas de zumbis já foram documentadas em 20 países, segundo a pesquisadora. O maior dos encontros reuniu 4 mil participantes no New Jersey Zombie Walk, no Parque Asbury, em Nova Jersey, em outubro de 2010, segundo o Guinness, o Livro dos Recordes” (GLOBO, 2014).
Desde a Antiguidade Clássica as tragédias cumprem uma função catártica, permitindo a purgação dos pecados, a purificação da alma e o alívio de nossos medos mais terríveis e profundos. Outro dado importante que tem de ser levado em conta, embora não seja uma unanimidade, é o gosto pelo medo e pelas situações de horror. Há aqueles que sentem prazer e que se divertem com as representações grotescas da Zombie Walk. Fãs da estética trash, essas pessoas veem as cenas de horror como uma espécie de universo suprarreal, que metaforiza e exagera a realidade pela forma e pela aparência. De fato, o medo é algo relativo, assim como tantos outros conceitos abstratos, todos eles difusos e subjetivos.
Por fim, não podemos deixar de mencionar o gosto pela vida alheia e pelo espetáculo, característica inerente ao ser humano. Quem aí já não parou para ver um acidente, um corpo estendido no chão, nem se interessou por detalhes mórbidos de alguma tragédia? Isso parece ter ganhado mais força agora, com a globalização impulsionando (de modo absolutamente paradoxal!) as inter-relações (ainda que virtuais e artificiais) e o individualismo ao mesmo tempo. Facebook e Big Brother ajudam a comprovar essa tendência. Por falar em globalização e individualismo, nunca é demais retomar as ideias de Zygmunt Bauman, para quem o global interfere negativamente no conceito de “comunidade”, promovendo a individualidade em detrimento da consciência de grupo. Com base na atração das pessoas pelo espetáculo, podemos alinhavar e relacionar algumas das hipóteses mencionadas neste texto. A hipótese da infelicidade e da morte aparente da sociedade, defendida pela estudiosa norte-americana Sarah Lauro, é a primeira a ser retomada, pois “a crítica que atinge a verdade do espetáculo descobre-o como a negação visível da vida; uma negação da vida que se tornou visível” (DEBORD, citado em GUEDES, 2014). É também em Debord que encontramos base para conceituar a Zombie Walk como espetáculo, porque, segundo o autor, “onde há representação independente, o espetáculo reconstitui-se” (DEBORD, citado em GUEDES, 2014).
Portanto, parece evidente que, assim como estamos refletindo agora sobre a razão da invasão dos zumbis (e de tudo mais que faz parte do estilo New Weird) em nossa cultura, os falsos zumbis, ainda que inconscientemente, refletem e analisam a atual realidade, já que todo espetáculo “não realiza a filosofia”, mas “filosofa a realidade. É a vida concreta de todos que se degradou em universo especulativo” (DEBORD, citado em GUEDES, 2014). Essa degradação já foi anunciada há tempos, por Bauman, também por outros autores que escrevem sobre identidade cultural e para Guy Debord é graças a ela que, em pleno século XXI, voltou a prevalecer nossa ancestral fascinação pelo espetáculo: “A origem do espetáculo é a perda da unidade do mundo, e a expansão gigantesca do espetáculo moderno exprime a totalidade desta perda (…). O que une os espectadores não é mais do que uma relação irreversível com o próprio centro que mantém o seu isolamento. O espetáculo reúne o separado, mas reúne-o enquanto separado” (DEBORD, citado em GUEDES, 2014). A julgar por esses apontamentos, podemos afirmar que nossa condição de mortos-vivos e nossa atração pelo espetáculo existirão por um bom tempo ainda. Então, a perspectiva é que a Zombie Walk continue, ano após ano, e conquiste cada vez mais adeptos, que fingem estar mortos, por amor à vida, “mesmo quando é assim pequena / (…) franzina;/ (…) uma vida severina” (MELO NETO, 1994, p. 60).
Este ano, mantendo a tradição, a décima terceira edição da Zombie Walk será uma opção tragicômica no domingo, 11 de fevereiro, para os que preferem um carnaval diferente, conforme o comportamento típico dos curitibanos que recusam o Rio de Janeiro, a Bahia, os desfiles na TV e a praia turbulenta. Então, Curitiba será como sempre, uma cidade de ruas vazias, habitadas apenas pelos zumbis seus adoradores, mas com shoppings, mercados e parques lotados. Aliás, já fui a várias edições, mas a melhor delas foi a de 2015. Como o tempo estava chuvoso, em vez de acompanhar a marcha, esperei a chegada perto do Mueller e da Praça 19 de Dezembro. Com o mau tempo, os zumbis chegavam e entravam no shopping, para fugirem da chuva. E ficavam por lá, circulando pelos corredores, pela praça de alimentação e pelos banheiros. Foi ótimo ver os monstros invadindo o recinto-bolha dos curitibanos certinhos, que não esperavam encontrar enfermeiras com o rosto em carne viva, garotinhas mortas abraçadas a ursinhos ensanguentados, garotos redivivos, arrastando-se com o machado ainda fincado nas costas, múmias, matadores com motosserras… Os olhares eram aterradores. Poucos riam. A maioria das pessoas desviava o caminho e olhava aterrorizada, sem entender o gosto daquelas pessoas pelo terror hiperbólico. E eu me diverti como nunca: com os zumbis e com os curitibanos incrédulos, que, com a invasão dos mortos-vivos a um dos shoppings mais tradicionais da cidade, foram obrigados a experimentar, por alguns minutos, o macabro dia do Juízo Final.
REFERÊNCIAS