A forma descartesiana na última edição de Catatau, de Paulo Leminski
Em 1990, no Curso de Letras da UFPR, todos falavam da obra Catatau, de Paulo Leminski. Sendo assim, esse e outros livros, que eu ainda não tinha lido, entravam para uma lista que eu fazia, quando ainda era caloura. Meu método era bastante simples: se algum professor, durante as aulas, mencionasse a importância de um livro que eu não conhecia ou conhecia apenas de ouvir falar, eu anotava título e autor. Depois, sempre que eu podia, ia à Biblioteca Pública do Paraná e passava as tardes lendo, anotando e resumindo várias obras. Agora sei que essa minha atitude equivale ao que hoje chamamos de ansiedade pelo excesso. Sim, eram muitos autores e textos estranhos para mim… Então, eu precisava tentar resolver esse problema.
Entre tantos títulos, as obras de Leminski sempre me chamaram a atenção. Gostava das novidades estéticas que ele propunha, dos jogos de palavras e da irreverência em todos os sentidos. Então, um dia pude ler a primeira edição de Catatau (Fig. 1), mas o livro era emprestado e com todas as recomendações do dono: para não amassar, não abrir demais, não sujar, não perder, etc. Claro que, depois disso, quis ter meu próprio Catatau, mas naquela época isso era impossível, pois a edição estava esgotada.
Porém, eu continuava namorando aquele livro, nos eventos literários de que participava. Em várias ocasiões, a família de Leminski levava alguns exemplares das edições raras do autor e colocava à venda. Um dia, tomei coragem e perguntei o preço do meu tão almejado Catatau: “Cinquenta reais”, respondeu uma das filhas do escritor. Agradeci e tratei de abandonar a ideia. Naquele tempo, cinquenta reais era muito dinheiro. A maioria dos livros, por exemplo, custa cerca de 10 reais… Além disso, eu era apenas uma estudante de Letras, que trabalhava como professora em um Jardim de Infância. Meus avós me ajudavam e meu salário mal dava para pagar as despesas de lanches na cantina, passagens de ônibus e cópias — muitas cópias dos textos que os professores pediam que lêssemos (nunca vou esquecer que tive dois professores que exageravam nessa parte: eles chegavam a encomendar cópias de umas quinhentas páginas cada um, em um único semestre!).
Bem… O tempo passou e um dia, passeando pela Fenac, reencontrei o Catatau. Meus olhos nem acreditavam naquilo que viam. Era o ano de 2010. Peguei o livro (Fig. 2), que estava lacrado, envolto em um plástico transparente. Finalmente, pude realizar meu sonho de consumo. Ironicamente, isso me custou cinquenta reais (só que, em 2010, esse valor não era mais uma exorbitância).
Voltei para casa animada, mas, quando abri o livro, fiquei decepcionada na mesma hora. A editora responsável pelo relançamento era a Iluminuras e, não sei por que razão, na nova versão o texto foi remodelado em sua estrutura. As margens justificadas à direita, que tanto tinham me impressionado, no passado, agora tinham sido desconfiguradas (Fig. 3). Em vez da retidão, as linhas privilegiavam um caminho tortuoso, popularmente conhecido como caminho de rato.Embora essa troca pareça insignificante, os especialistas em Design alertam que o alinhamento é importante, pois ajuda a definir “o processo de leitura do observador” (BARROS, 2020).
No fim de semana seguinte, comecei a ler o livro, mas não deu. Passei vários dias assim: pegando e largando a obra. Insisti, mas cheguei ao meu limite. Até hoje o marca livros está onde o deixei há exatos dez anos: entre as páginas 72 e 73 (e a edição da Iluminuras tem 253 páginas ao todo)… Com o passar do tempo, reneguei o livro por completo. Inclusive, ele deixou até de fazer parte da comissão de frente, em minha biblioteca. Hoje, cada vez que olho para aquela famigerada edição, sinto raiva e desaprovação. Então, um dia, estava assistindo a um programa sobre a importância do design nos livros e tive a ideia de escrever este texto. Acredito que esta espécie de revisita sirva para curar meu trauma. Segundo a Psicanálise, isso é possível…
Como o problema todo está na margem desalinhada da edição publicada pela Iluminuras, é imperativo pensarmos no efeito que a estrutura provoca, no leitor e também na própria história. Segundo Tinga (2020), a margem pode oferecer conforto ou desconforto para o leitor. No caso da obra de Leminski, o objetivo era o desconforto. Nunca é demais lembrar que Catatau foi escrito na época da ditadura e o leiaute rígido e pesado do livro dava a sensação de tortura ao leitor. Haroldo de Campos, em um de seus artigos, explicou o título escolhido por Leminski: “‘Catatau’, segundo Caldas Aulete e o Aurélio, significa: ‘Discurso enfadonho e prolongado; discurseira, béstia.’ É sinônimo de ‘pancada’ ou de ‘calhamaço’. Reconcilia as noções contraditórias de ‘sujeito de pequena estatura’ e ‘coisa grande e volumosa’” (CAMPOS, 2010, p. 236, grifo no original). O mesmo “discurso enfadonho”, que apareceu na pesquisa de Campos, é mencionado por Ivan da Costa, mas em outras palavras: “Catatau é um texto comprido e grosso. É a retomada da linha evolutiva da poesia concreta. É vanguarda. É um porre verbal” (COSTA, 2003, p. 233, grifo nosso). Portanto, o desagrado ao leitor era proposital e dependia essencialmente do alinhamento justificado à direita, formando um texto denso, em bloco único e reto, sem recuos ou novos parágrafos. Não havia nenhum tipo de válvula de escape para a concentração do leitor.
O próprio Leminski definiu o livro como “mentismo”, espécie de pensamento que se volta “contra o paciente, atingindo exatamente os pontos mais delicados de suas neuroses e psicoses” (LEMINSKI, 2003, p. 217, grifo no original). Em outro trecho, o escritor propõe a décima quinta definição para Catatau: “15. Mensagem afetada de elevado coeficiente de ininteligibilidade, a legibilidade no Catatau está distribuída de maneira irregular” (LEMINSKI, 2003, p. 217, grifo nosso). Apesar de crer que esses argumentos já bastam para demonstrar a função indispensável do alinhamento justificado, as provas vão se acumulando. Ainda nas palavras do autor: “No Catatau, a expectativa é sempre frustrada. O leitor jamais sabe o que deve esperar […]” (LEMINSKI, 2003, p. 215). “Dentro do Catatau, o leitor perde a mania de procurar coisas claras. Então, aquelas que são claras por si mesmas tornam-se escuras no seu entendimento” (LEMINSKI, 2003, p. 215). Como se vê, o projeto estético do autor tinha como base a inovação, o experimentalismo e a desestabilização do leitor. Catatau é uma obra de ruptura, razão pela qual o livro propõe ao público um novo condicionamento ou, melhor dizendo, um descondicionamento.
Mais um detalhe que o próprio Leminski explica diz respeito à forma cartesiana: “O Catatau é o fracasso da lógica cartesiana […]” (LEMINSKI, 2003, p. 212). A partir dessa afirmação, ganha forma a grande ironia do livro. Ao passo que a história, ou o conteúdo em si, demonstra esse fracasso, a estrutura mantém a rigidez, lembrando que a ordem cartesiana está viva. Por isso escolhi o adjetivo descartesiana para dar título a este texto, afinal, ao desrespeitar a margem justificada, a editora Iluminuras destrói a maior ironia do livro, feita com base na oposição entre forma e conteúdo.
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Por essa razão, e também por ser a edição mais recente, a versão da editora Iluminuras pode ser comprada, hoje, por 59 reais, enquanto a primeira edição, considerada rara, pode ser adquirida por 211 reais mais o valor de frete. Sem dúvida, estou pensando em partir para a opção mais cara… E ainda nem mencionei outra diferença, apesar de ela ter sido já demonstrada nas figuras 1 e 2. Trata-se da formatação da capa. O clássico padrão p&b, com o título em vermelho (no alto) e com as múltiplas miniaturas das cenas de luta, foi substituído pelo contrate das cores (verde e roxo), com o título mais ao centro e com uma redução significativa nas cenas de luta, que aparecem em quantidade menor, mas com o tamanho ampliado, no livro lançado pela Iluminuras.
Para encerrarmos este comparativo, cito novamente Barros (2020), que afirma que design é projeto. A menção é de suma importância, ainda mais em se tratando de literatura, pois, nesse tipo de arte, o projeto corresponde à estética da obra, ao estilo individual do autor e, no caso de Catatau, ao conteúdo da história. A fim de fornecermos mais um exemplo significativo, proponho a seguinte reflexão: O que aconteceria, se uma editora decidisse relançar as obras de José Saramago com todos os pontos e vírgulas que o autor decidiu não usar? A resposta é simples: Saramago deixaria de ser Saramago. A falta de pontuação do escritor português e a margem justificada que o polaco curitibano decidiu dar a Catatau são verdadeiros alicerces e determinam a recepção das obras em questão, desde o primeiro momento. Isso equivale a dizer que essas características são levadas em conta no pacto ficcional (ECO, 1994) que o leitor estabelece com o livro, antes mesmo de iniciar a leitura da história propriamente dita.
Com a tortuosidade da margem direita, a editora Iluminuras fez com que o bloco único de Catatau perdesse o peso, tornando-se leve e até convidativo para o leitor desavisado, que não conheceu o poder transgressor da estética de Leminski. Aliás, agora que chegamos ao fim desta resenha, arrisco um palpite não científico (e sei que Leminski irá aprovar, esteja ele onde estiver): a editora Grafipar, responsável pela primeira edição, era Bicho do Paraná e todo lugar tem uma estética específica, que o define e o espelha. Nesse sentido, talvez o fato de a editora Iluminuras ser paulista, fora do reduto em que predomina a chamada “Estética do frio” (RAMIL, 1992), tenha influenciado a infeliz escolha de mudar o alinhamento original. Afinal, como dizia Leminski: “Pinheiro, não se transplanta” (REBUZZI, 2003, p. 74).
REFERÊNCIAS
BARROS, D. Os quatro princípios básicos do design. 16 jan. 2019. Disponível em: <https://medium.com/@danbarrosdesign/quatro-principios-do-design-333de5f1563>. Acesso em: 27 mar. 2020.
CAMPOS, H. de. Uma Leminskíada barrocodélica. In: LEMINSKI, P. Catatau. São Paulo: Iluminuras, 2010, p. 235-239.
COSTA. I. da. A literatura destronada (a literatura reconstruída). In: LEMINSKI, P. Catatau. São Paulo: Iluminuras, 2010, p. 233-234.
ECO, Umberto. Seis passeis pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
LEMINSKI, P. Catatau. Curitiba: Grafipar, 1975.
_____. Catatau. São Paulo: Iluminuras, 2010.
_____. Quinze pontos nos iis. In: _____. Catatau. São Paulo: Iluminuras, 2010, p. 215-217.
_____. Descordenadas artesianas. In: _____. Catatau. São Paulo: Iluminuras, 2010, p. 211-213.
RAMIL, V. Estética do frio. Porto Alegre: UFRGS, 1992.
REBUZZI, S. Leminski, guerreiro da linguagem. Uma leitura das cartas-poemas de Paulo Leminski. Rio de Janeiro: 7Letras, 2003.
TINGA, M. 4 dicas de ouro para design de livros. 18 fev. 2019. Disponível em: <https://designculture.com.br/4-dicas-de-ouro-para-design-de-livros>. Acesso em: 27 mar. 2020.
Hey, Prof:
O Catatau do Leminski nunca me desorientou por nunca ter-me apanhado em sua rede.
A poesia dele, tão supervalorizada, um pouco mais. Acho o Leminski “over”/vanguarda. Talvez um dia escreva sobre isso na mesma linha do seu texto – como “cura”.
Conhece esse trabalho “O Catatau de Paulo Leminski (des) Coordenadas Cartesianas, por Tida Carvalho?
O que me diz? A forma descartesiana joga bem com seu título “A forma descartesiana …”
Abraço do Beto.
Eita! Polêmico! rsrs
Sou suspeito para falar do Leminski. A professora (paranaense) mais ainda, acho.
Cássio, sim, sou suspeitíssima, mas mais pela questão do gosto, como escrevi ao Adalberto, e menos por ser paranaense. Digo isso, porque o Leminski é do tipo “ameixas, ame-as ou deixe-as”. Conheço vários paranaenses que praticamente o renegam como artista…
Não consigo entender, sabe, essa questão da repulsa dos paranaenses ao Leminski.
Não amar Jorge Amado, por exemplo, na Bahia, é como negar o “ser baiano”. Embora eu saiba que muitos o define como escritor mediano, sobretudo na Academia.
Forte abraço, professora!
Adalberto, não conheço o texto que você mencionou. Respeito sua opinião sobre o Leminski, mas creio que essa diferença é salutar em tudo. Retomando meu texto anterior, publicado aqui no Recorte: a pluralidade, com antagonismo ou não, é sempre positiva. É ela quem move a crítica, afinal, tornando-a interessante.
Além disso, reconheço que é questão de gosto e de personalidade. Aprecio Leminski totalmente. Concordo que as obras dele são over, ultrapassam limites, mas persigo esses experimentalismos, em todas as artes.