O aparente improviso na vida e na arte
Na era das lives, a arte do vídeo está contando com as novas tecnologias para se aprimorar e consolidar seu lugar na sociedade 4.0. É sabido que, nas performances ao vivo, uma boa dose de improviso é fundamental. Entretanto, temos de reconhecer que qualquer tipo de improviso pode ser relativizado; afinal, sempre há um planejamento, um roteiro e um esforço (de atores e apresentadores) para que tudo pareça natural e não ensaiado. Nesse contexto, o improviso experimenta o mesmo paradoxo do documentário, gênero que é comumente associado aos fatos e à verdade. No entanto, o documentário não deixa de ser um filme. Obviamente, ele pode apresentar um baixo teor ficcional, mas a história sempre terá seu sentido transformado pelo ângulo da câmera, pela seleção das falas e imagens que irão a público, pelo cenário, pelo figurino, pelas perguntas ou pelos temas discutidos, etc. Portanto, documentário ou improviso sempre dizem respeito também à criação, à subjetividade e à arte.
Em nosso tempo, as lives se transformaram nas substitutas oficiais dos encontros, que, antes da pandemia, via de regra, eram feitos pessoalmente. Infelizmente, essa época passou e ainda não há previsão de volta. Portanto, hoje, programas de TV, peças de teatro, shows de música, eventos, telejornais e aulas usam e abusam de plataformas e canais digitais, que levam imagens e sons para perto das pessoas e possibilitam certos tipos de “aglomerações” virtuais, em uma tentativa de atenuar o afastamento imposto pelo isolamento social, na era do Covid-19.
Pensando em tudo isso, de algum modo relacionei a maioria das lives a que assisti, durante esta “quarentena” interminável, a um tipo de arte videográfica que investe deliberadamente em um formato mais caseiro, mas não menos artístico. Então, recorri à memória e às minhas preferências estéticas, claro, e resgatei três vídeos: um clipe de Nando Reis; um show de Arnaldo Antunes; e um clipe recente dos Titãs, resultado da novíssima formação de Trio Acústico. Depois de revelar essa pequena lista, é importante mencionar que a predominância dos Titãs e de ex-Titãs não foi algo planejado. Foi mero instinto…
Seguindo a ordem cronológica, nossa análise começa pelo clipe Luz dos olhos (2003), de Nando Reis (Fig. 1 e Fig. 2). De acordo com o músico, a música foi lançada anos antes, quando integrou o álbum O erê (1996), do grupo Cidade Negra. Posteriormente, a composição de Nando Reis foi cantada por Cássia Eller, no Acústico MTV (2001). Finalmente, o ex-titã resolveu dar voz à própria criação e incluiu a música no CD A letra A (2003), primeiro disco solo depois da saída de Nando dos Titãs (SANTOS, 2020).
As imagens imperfeitas são essenciais ao clipe, pois são elas que dão certa simplicidade, meio ao estilo cinemanovista, para o qual bastavam “uma ideia na cabeça e uma câmera na mão”… Desde o início do clipe, acompanhamos a rotina do casal, nos preparativos para o casamento e para a nova vida. Sendo assim, as cenas mostram a mudança e, como vimos nas figuras acima, a compra da cama, das alianças e as produções pré-casório, tanto do noivo quanto da noiva. Nando Reis explica a história do clipe, mencionando a “presença/ausência da pessoa amada” (SANTOS, 2020).
Ao final do vídeo, depois de assistirmos a todo o ritual do casamento — desde a mudança até a cerimônia religiosa, a sessão de fotos e a festa, animada pelo próprio Nando Reis, que aparece no palco, recebendo os aplausos dos convidados dos noivos — os protagonistas assumem a palavra e, de certo modo, explicam tudo aquilo que foi mostrado no clipe:
NOIVO: Bom, eu sou o Marcelo Santos Oliveira.
NOIVA: Meu nome é Carla dos Santos Marques.
NOIVO E NOIVA (juntos): Hoje é o dia do nosso... casamento. (REIS, 2020)
Curiosamente, o compositor também revela que, na letra de Luz dos olhos, há uma clara referência ao clássico “Sonífera ilha”, dos Titãs, e o elemento responsável por essa conexão aparece nesta parte, que menciona o velho rádio à pilha:
Liga o rádio à pilha, a TV
Só pra você escutar
As novas musas que eu tenho agora
Lá fora a rua vazia chora (REIS, 2020)
Essa informação foi, para mim, um verdadeiro achado, já que este texto trata exatamente da relação entre Luz dos olhos, o show Ao vivo lá em casa e o novo clipe de “Sonífera ilha”.
Passamos agora à análise de um show realizado por Arnaldo Antunes, em agosto de 2010. O evento foi batizado de modo a sinalizar o uso do improviso como recurso estético: Ao vivo lá em casa, e foi realizado na casa do artista, localizada no bairro de Pinheiros, na capital paulista. Para acentuar ainda mais esse lado “natural”, acolhedor e intimista do show, usamos uma parte específica da apresentação, que traz a música “A casa é sua”. Aproveitando essa deixa, o músico fez a seguinte brincadeira para recepcionar o público, formado essencialmente por amigos e colaboradores: “A casa é de vocês” (ANTUNES, 2010).
A Casa é Sua é uma música que nasceu antes da ideia de fazer o DVD e especial de TV “Ao vivo lá em Casa”, […] show próximo, íntimo, [em] clima de festa de amigos, criado para celebrar o disco e a turnê do “Iê, Iê, iê”. (ANTUNES, 2010)
Nas imagens do clipe A casa é sua (Fig. 3 e Fig. 4), percebemos novamente as imagens imperfeitas, que misturam a performance do artista com a reação do público e com algumas cenas de bastidores:
De algum modo, os improvisos que dominaram o clipe de Nando Reis e o show de Arnaldo Antunes vão se repetir no novíssimo clipe Sonífera ilha, dos Titãs — Trio Acústico e, para entender melhor essa coincidência, temos de resgatar e associar os conceitos de estilo, identidade cultural e identidade musical. Os Titãs e os ex-Titãs já foram um só e, na formação do grupo, prevaleceram, por muitos anos, as características que definiram o DNA da banda:
[…] não há sentido em falar-se em uma única identidade dos indivíduos, mas sim em múltiplas identidades que constroem-se dinamicamente, ao longo do tempo e nos diferentes contextos ou espaços situacionais dos quais esses indivíduos participam. (SILVA; VERGARA, 2020)
Foi assim, compartilhando uma cultura comum, nas décadas de 1980 e 1990, que Nando Reis, Arnaldo Antunes e os atuais Titãs consolidaram uma identidade que, hoje, pode ter se somado a outras influências e a outras escolhas, mas que sempre vai fazer parte do repertório desses artistas. Para alguns teóricos, quando se trata de um grupo, é possível que essa identidade prevaleça, sobrepondo-se à identidade individual:
[…] na necessidade de sobrevivência dentro de um sistema […], é comum observarmos reações padronizadas, sem características pessoais, sem a impressão pessoal do indivíduo dentro do grupo. Ele passa a ser a extensão do comportamento do grupo […], desenvolvendo uma “personalidade organizacional” que se sobrepõe à sua, quando não a substitui por inteiro. (SCHIRATO, 2000, p. 100)
Evidentemente, quando a noção de grupo deixa de existir, o poder da identidade grupal sofre um duro golpe. Sozinho, o artista é obrigado a se redefinir e tem liberdade para seguir outras tendências. Apesar disso, é uma utopia pensar que aquelas características que o aproximavam do antigo grupo irão desaparecer para sempre.
Nosso último exemplo de aparente improviso é o novo clipe Sonífera ilha, dos Titãs: “O single lançado em áudio e clipe, marca a contagem regressiva para […] ‘Titãs Trio Acústico – EP01’. Depois virão ‘EP02’ e ‘EP03’” (GOMES, 2020). Na nova versão: “[…] a música viaja para um ska essencial, com piano, baixo, guitarra acústica e um acento percussivo ganhando uma despretensão como se tivesse sido composta na semana passada” (GOMES, 2020, grifo nosso). A parte destacada nessa citação combina perfeitamente com as propostas do formato acústico (que prevê novo arranjo, geralmente menos ou nada agressivo) e do improviso.
A música “Sonífera ilha” foi lançada em 1984, no álbum de estreia dos Titãs, intitulado simplesmente Titãs. Hoje, 36 anos depois, o grupo revisita seu maior clássico. O novo clipe contou com a direção de Otávio Juliano, que também participou do projeto da ópera-rock Doze flores amarelas. Comemorada pelos fãs, a reedição de Sonífera ilha “[…] alterna takes do elenco estelar dublando trecho da letra de Sonífera ilha no clipe gravado sob direção de Otavio Juliano e Luciana Ferraz. A canção permanece viva graças ao perene apelo popular, ao qual os Titãs recorrem em ação providencial e certeira” (MUNDO LIVRE, 2020).
O clipe traz participações mais que especiais, como a do Paralamas, Rita Lee, Andreas Kisser, Cyz Mendes, que deu voz para uma, das três “Marias” retratadas na história de “Doze Flores Amarelas”, Alice Fromer, Elza Soares, o rapper Edi Rock, Fabio Assunção, Fernanda Montenegro, Casagrande e Roberto de Carvalho. O propósito do trio (tanto de músicos quanto de EPs) é o mesmo: fazer diferente. (GOMES, 2020)
No início do clipe, o tom mais intimista, típico do formato acústico, predomina. Os integrantes do Trio Acústico se alternam e dominam a cena (Fig. 5):
Porém, isso dura apenas alguns segundos. Contrastando com a seriedade das cores e do cenário com pouca luz, não demora para que os convidados do Trio desfilem suas interpretações, que ficam restritas a gestos, expressões faciais e à pessoalidade dos cenários (quase sempre suas próprias casas) e das roupas, já que, na sonoridade, os Titãs continuam a comandar a festa, afinal a dublagem impede que o público ouça as diferentes vozes do elenco que participa do vídeo. Sem dúvida, a dissociação entre os corpos e a fala é a grande surpresa estética do clipe. Não se trata de mera montagem, que recorta e cola trechos, para enfileirar os convidados da banda. Imagem e som embaralham-se e brincam de aproximar as pessoas que estão distanciadas pelo isolamento social, e impedidas de participar da grande Jam Session que é criada, ao som de “Sonífera ilha” (Fig. 6 a 8).
Nesse projeto audacioso dos Titãs, o formato das lives e o atual home-office dialogaram perfeitamente com o novo clipe. Em certo sentido, esses dois fatores contribuíram com a simplicidade do arranjo e com a intimidade instituída pela banda, que fez questão de convidar amigos de longa data. Conforme Tim Ingold, improvisar é “seguir os caminhos do mundo à medida que se abrem, ao invés de recuperar a cadeia de conexões, desde um ponto-final para um ponto de partida, em uma rota já percorrida” (INGOLD, 2015, p. 309). Sim, exatamente foi isso que o Trio Acústico fez, quando optou por produzir um clipe em plena pandemia, quando o mundo foi assolado por um vírus que teve o poder de imobilizar e separar todos nós. Diante disso, os Titãs escolheram o melhor caminho estético para a recriação do sucesso “Sonífera ilha”.
O novo clipe foi lançado no dia 20 de março de 2020, poucos dias depois de o Brasil ter parado por causa do Covid-19. Isso significa que o hit clássico foi escolhido muito antes, talvez como um tipo de profecia ou de resposta inconsciente ou instintiva à ameaça que se abateu sobre a China e depois foi se alastrando pelo mundo afora.
[…] improvisação é abertura para entrar em contato com o ambiente e o outro, é a vontade de jogar. Improvisar é atuar sobre o ambiente e permitir que os outros atuem sobre a realidade presente, como num jogo. (SPOLIN, 2008, p. 23)
A partir dessa definição de improviso, e considerando as condições impostas pela pandemia, improvisação e alteridade se uniram, no novo clipe, em um esforço notável, para tentar driblar a solidão e o isolamento (ironicamente — ou não — presentes na letra de “Sonífera ilha”) e para permitir que vários artistas se reunissem e cantassem a uma só voz (a dos Titãs, graças à dublagem usada no vídeo). Benditas sejam a Internet e as lives!
No domínio musical, a improvisação não é um estilo, nem um conjunto de técnicas. […] estrutura, significado e contexto surgem da análise, da criação, da manipulação e da transformação, as quais se referem especificamente aos símbolos sonoros. (LEWIS, 2004, p.134, tradução nossa)
Assim, (re)criando sentidos e associando-os às imagens, os artistas cujas obras foram analisadas aqui exploraram as velhas formas, dando a elas uma nova roupagem e demonstrando que um percurso estético é feito de mudanças, riscos e experimentações. Trata-se de aprender com a vida e de se transformar, à medida que o tempo passa: lifelong learning.