O mês da gripe
Verônica Daniel Kobs – [email protected]
Na década de 1990, li pela primeira vez O mez da grippe, de Valêncio Xavier. Como curitibana típica, no bom e no mau sentido, tenho interesse pela história da cidade e é um pouco disso que essa obra literária oferece, em meio a um estilo inovador, marcado pelo predomínio da alternância, da colagem e de um status diferenciado em relação à autoria. Valêncio escolheu o ano de 1918, quando a guerra e a gripe espanhola deixaram rastros de destruição, por aqui e pelo resto do mundo. Durante minha leitura, várias outras coisas também me chamaram a atenção: as imagens às vezes imperfeitas, as estatísticas, o cenário devastador, os relatórios assinados por Trajano Reis, as histórias de Dona Lúcia[1] e a oposição entre os dois jornais mais importantes da época: O Commercio do Paraná e O Diário da Tarde[2].
Porém, por mais que eu admire a literatura de Valêncio Xavier, especialmente O mez da grippe, nunca pensei que viveria uma situação semelhante à que ele mostrou em sua novella. Desde que o novo coronavírus começou a causar mortes no Brasil, há cerca de dois meses, revisitei o livro e, depois de algumas semanas, tive a ideia de reeditar informalmente a obra de Valêncio Xavier, escrevendo esta crônica. Entretanto, o objetivo deste texto vai além do simples registro: é também um convite à comparação, a partir de uma leitura dupla, que propõe um trânsito frequente pelos anos de 1918 e 2020. As semelhanças entre o que os curitibanos viveram há mais de um século e o que estamos vivendo agora são aterradoras…
Senhoras e senhores, apresento agora O mês da gripe, em versão revisada, ampliada e atualizada:
Infelizmente, nosso tempo, agora, é muito similar à história que Valêncio Xavier registrou e que considerávamos muito distante de nós. Há poucos meses, essa realidade começou a mudar… Ainda assim, quando ouvíamos falar de um novo vírus, também não imaginávamos que ele pudesse sair dos confins da China e nos alcançar com tanta violência. No entanto, o alastramento foi rápido, o vírus viajou da Ásia a Europa e acabou chegando aos trópicos. De uma doença local, o covid-19 passou a ser o protagonista de uma pandemia. E foi assim, em um estalar de dedos, que viramos personagens: como aqueles da história reconstruída em preto e branco[39], nas páginas de Valêncio Xavier; ou daquele filme com o Matt Damon, que vimos há muito tempo; ou daquela série recente, veiculada no Netflix, em 2019… São muitos enredos parecidos, mas estávamos acostumados a interpretar tudo como uma espécie de distopia, que preferíamos deixar no plano da História ou da Ficção Científica… Porém, hoje, os personagens e as cenas somos nós, nosso dia a dia. Somos obrigados a conviver com a peste, com o medo, com a solidão e com a esperança de dias melhores, que certamente virão, apesar de sabermos que nunca mais seremos os mesmos.
Apesar disso, desejamos a vida!
Notas de fim:
[1] A personagem Dona Lúcia foi construído com base na mãe de Poty Lazarotto, pois Valêncio Xavier entrevistou a mãe do amigo, para colher informações sobre a gripe espanhola. Para utilizar o mesmo recurso do autor, criei aqui a personagem Dona Laura, para manifestar a voz popular sobre o que estamos vivendo hoje, em 2020, durante a pandemia do novo coronavírus.
[2]O Commercio do Paraná privilegiava as notícias sobre a guerra, enquanto O Diário da Tarde cobria a epidemia do vírus da gripe espanhola.
[3] SFAIR, 2020.
[4] XAVIER, 1998, p. 35.
[5] URIBE; CHAIB; COLETTA, 2020.
[6] XAVIER, 1998, p. 24.
[7] GOVERNO DO ESTADO DO PARANÁ, 2020.
[8] XAVIER, 1998, p. 15.
[9] KOWALSKI; FREITAS, 2020.
[10] VICENTE, 2020.
[11] XAVIER, 1998, p. 36.
[12] KOWALSKI, 2020.
[13] XAVIER, 1998, p. 13.
[14] PINHEIRO, 2020.
[15] XAVIER, 1998, p. 26.
[16] REIS, 2020.
[17] XAVIER, 1998, p. 36.
[18] SARZI, 2020.
[19] SARZI, 2020.
[20] OLIVEIRA, 2020.
[21] XAVIER, 1998, p. 32.
[22] EXPRESSO AM; JORNALISTA, 2020.
[23] XAVIER, 1998, p. 44.
[24] AZEVEDO, 2020.
[25] XAVIER, 1998, p. 18.
[26] GOVERNO DO ESTADO DO PARANÁ, 2020b.
[27] XAVIER, 1998, p. 23.
[28] EFE; R7, 2020.
[29] XAVIER, 1998, p. 13.
[30] BAND, 2020.
[31] XAVIER, 1998, p. 58.
[32] KELLY, 2020.
[33] XAVIER, 1998, p. 33.
[34] GOVERNO DO ESTADO DO PARANÁ, 2020c.
[35] XAVIER, 1998, p. 78.
[36] Em 1919, o Dr. Trajano Reis divulgou o balanço relativo aos mortos e aos infectados pelo vírus da gripe espanhola, durante os meses em que a epidemia atingiu Curitiba. Na época, a situação durou cerca de três meses (de outubro a dezembro de 1918), sendo que o pico da doença ocorreu em novembro de 1918. No relatório oficial, aparecem os nomes de Curitiba e de outros três distritos. Segundo o IBGE: “Pela Lei Estadual n.º 1.581, de 25-03-1916, é criado o distrito de Santa Felicidade e anexado ao município de Curitiba” (IBGE, 2020). Apesar disso, o documento não segue a divisão que tinha sido adotada recentemente, levando-nos a contatar que os números de Santa Felicidade foram distribuídos pelos outros distritos.
[37] XAVIER, 1998, p. 39.
[38] XAVIER, 1998, p. 39.
[39] Os trechos de notícias e as imagens relativas a 2020 tiveram a saturação alterada pela autora desta crônica, para que o colorido desse lugar ao padrão p&b, a fim de promover mais proximidade em relação à novela original, de Valêncio Xavier. Contudo, a grafia foi atualizada, daí a razão do título O mês da gripe, com a clara intenção de ressaltar, em pleno século XXI, a atualidade e a pertinência do tema histórico explorado pelo escritor. Além disso, durante o processo de escrita, pude experimentar um pouco do estilo de Valêncio Xavier. Percebi que a documentação era importante (por isso tantas notas e referências) e que, pelo fato de ter usado vários textos de notícias, o peso da minha autoria diminuiu. Minha ação se restringiu a pesquisar e selecionar textos e minha voz ganhou espaço mais marcante apenas em alguns momentos: na abertura, no fechamento e no discurso de D. Laura.
REFERÊNCIAS
AZEVEDO, G. Ratinho diz que não há data para fim de isolamento e que pode decretar quarentena drástica no Paraná. 9 abr. 2020. Disponível em: Quarentena hoje / https://ricmais.com.br/noticias-coronavirus/quarentena-coronavirus-parana/. Acesso em: 8 mai. 2020.
BAND. Chef Henrique Fogaça distribui marmitas em São Paulo. 22 abr. 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HmQ15BfAHjA. Acesso em: 8 mai. 2020.
EFE; R7. OMS nega que novo coronavírus tenha sido criado em laboratório. 21 abr. 2020. Disponível em: https://noticias.r7.com/saude/oms-nega-que-novo-coronavirus-tenha-sido-criado-em-laboratorio-21042020. Acesso em: 8 mai. 2020.
EXPRESSO AM; JORNALISTA. Foto de covas abertas é chamada de “terrorismo” por Bolsonaro. 3 abr. 2020. Disponível em: https://expressoam.com/foto-de-covas-abertas-e-chamada-de-terrorismo-por-bolsonaro/. Acesso em: 8 mai. 2020.
GOVERNO DO ESTADO DO PARANÁ. Velórios e sepultamentos têm restrições em razão do novo coronavírus. 20 mar. 2020. Disponível em: https://www.curitiba.pr.gov.br/noticias/velorios-e-sepultamentos-tem-restricoes-em-razao-do-novo-coronavirus/55361. Acesso em: 8 mai. 2020.
GOVERNO DO ESTADO DO PARANÁ. O que fazer, utilize álcool em gel 70%. Disponível em:
http://www.coronavirus.pr.gov.br/Campanha/Pagina/O-que-fazer-Utilize-alcool-em-Gel-70. Acesso em: 8 mai. 2020b.
GOVERNO DO ESTADO DO PARANÁ. Boletim 44. Curitiba registra sete novos casos de covid-19. 6 mai. 2020. Disponível em: https://www.curitiba.pr.gov.br/noticias/curitiba-registra-sete-novos-casos-de-covid-19/55846. Acesso em: 8 mai. 2020c.
IBGE. Curitiba. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pr/curitiba/historico. Acesso em: 1 mai. 2020.
KELLY, B. Com enterros em valas comuns por crise do coronavírus, Manaus sofre com falta de caixões. 29 abr. 2020. Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/brasil/com-enterros-em-valas-comuns-por-crise-do-coronavirus-manaus-sofre-com-falta-de-caixoes,719536c2b907823efd7d11d7720ed70amxxfc3a7.html. Acesso em: 8 mai. 2020.
KOWALSKI; R. L.; FREITAS, F. de. Coronavírus transforma pontos turísticos de Curitiba em ‘zonas fantasma’; confira as fotos e vídeos. 22 mar. 2020. Disponível em:
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KOWALSKI, R. L. No aniversário, Curitiba vê pior epidemia dos últimos 100 anos, mas já enfrentou outros surtos. 26 mar. 2020. Disponível em: https://www.bemparana.com.br/noticia/covid-19-nao-e-a-primeira-nem-a-ultima-epidemia-na-capital#.Xqx6DahKjIU. Acesso em: 8 mai. 2020.
OLIVEIRA, S. Medo da pandemia de covid-19 afeta a saúde emocional: como lidar melhor. 1 abr. 2020. Disponível em: https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2020/04/01/medo-da-pandemia-de-covid-19-afeta-a-saude-emocional-como-lidar-melhor.htm. Acesso em: 8 mai. 2020.
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SARZI, L. Comércio fechado, quase nenhum pedestre, poucos carros: veja como está a região Central de Curitiba por causa do coronavírus. 31 mar. 2020. Disponível em: https://ricmais.com.br/noticias-coronavirus/comercio-fechado-quase-nenhum-pedestre-poucos-carros-veja-como-esta-a-regiao-central-de-curitiba-por-causa-do-coronavirus/. Acesso em: 8 mai. 2020.
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VICENTE, M. X. Curitiba ‘fantasma’: imagens da cidade vazia na quarentena. 24 mar. 2020. Disponível em: https://www.tribunapr.com.br/noticias/curitiba-regiao/curitiba-fantasma-imagens-da-cidade-vazia-na-quarentena/. Acesso em: 8 mai. 2020.
XAVIER, V. O mez da grippe. In: _____. O mez da grippe e outros livros. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 7-80.
Impressionante similaridades, professora.
Obrigado por sua pesquisa.
Abraço do Beto.
Olá, Adalberto,
Sim, fiquei surpresa quando vi que tantas associações eram possíveis!!!
Por nada. É sempre um prazer publicar aqui e contar com sua leitura e de todo o público cativo do Recorte Lírico.
Abraço.
Orgulho de ser sua aluna! Parabéns pela crônica, muito bem escrita!
Olá, Camila. Obrigada! Fiquei prestigiada com sua leitura e com seu comentário! Abraço.
Parabéns, professora querida!! Gostei muito!
Suelene, obrigada pela atenção de sempre! Seu retorno é muito importante para mim! Abraço.
Parabéns por mais um texto brilhante!
Obrigada, amiga! Abraço.