Gaiola sem paisagem
Naquela época, éramos uma centena de meninos e meninas vivendo no abrigo. Por muito tempo, fiz parte da banda dos “pequenos” e, justo quando iria ser admitido entre “os grandes”, soou a hora de encontrar um novo refúgio – lar de verdade, isso demoraria alguns anos a tê-lo. Hoje, desse período, restam as memórias mais preciosas que se oferecem como um sonho bom, tiradas do melhor quartil da vida – a vida de menino.
A frase shakespeariana, popularizada pelo poeta gaúcho Augusto Meyer, relembra-nos que somos um sonho de um sonho na sombra. Isso toma sentido maior ainda quando alcançamos os sessenta anos, e admitimos que mal tudo começou e já se vai, já se vai… o passado é como uma aquarela que se vai esmaecendo, mas ganha cores nos sonhos reais do idoso insone.
Era um domingo, portanto, tínhamos que realizar nossas tarefas diárias bem cedo, para estarmos prontos para ir à igreja. Domingo, pede cachimbo – ia o menino cantarolando, no caminho do terreiro para o chiqueiro, onde devia alimentar os porcos. Levava um balde de ração e só enxergava o vasto céu acima da cabeça, no espaço que separava a área da gente da dos bichos.
O terreiro não ficava longe do pasto, e bem menos do chiqueiro. No meio, ficava o terreno dos bichos outros que viviam soltos: dois cachorros, um galo velho, algumas galinhas, e um cabrito. O cavalo ficava restrito à área do pasto, a única bem cercada, além da horta, que tinha apenas uma telinha baixa e frágil de separação do resto.
Foi assim que o menino viu o temível cabrito – o “Bito” para os pequenos – ameaça sempre constante aos que ousavam vagar para além do terreiro, área segura e firme, onde os miúdos brincavam, a não ser por uma outra agressão causada por um brigão, jogando finca ou bolinhas de gude.
O Bito tinha sua tática de ataque e as preliminares incluíam arrastar os cascos no chão, movimentos que serviam como anúncio que deixava só duas saídas: fugir ou encarar o bode. O menino não titubeou, ao ver o cabrito abaixar a cabeça e mirar em sua direção – acovardou-se e fugiu. Imaginou que o monte de lenha ali perto seria seu refúgio. Não foi.
Uma acha de madeira o perfurou do lado direito do peito e o sangue na camisa o fez desfalecer.
Acordou horas depois com um enorme sol no rosto.
– Haviam me movido para a enfermaria, onde uma luz como um sol, me conduziu a uma hierofania: o Criador se mostrava com sua face de perdão e cura, contra um bicho desalmado que, ao bater os cascos no chão, anunciava-se como maldição, só evitada com a reza e a disciplina.
Naquele domingo, não foi à igreja, mas teve uma pequena lição de como evitar o bode que habitava no quintal do orfanato – e que morreu dias depois; aquele domingo ficou marcado como uma das sete cicatrizes que fizeram dele um homem.
Até hoje se pergunta: era um cabrito ou um bode expiatório? E pensa que desde então ninguém pode jamais furtar o milagre que é viver fora do curral dos adultos – comunhão de sentimentos que se revive anos depois ao ler o belo poema de nosso mais célebre africanista – o diplomata e acadêmico Alberto da Costa e Silva, do livro intitulado “As linhas da mão[i]”. O poema é Hoje: Gaiola Sem Paisagem:
Nada quis ser, senão menino. Por dentro e por fora, menino.
Por isso, venho de minha vida adulta como quem esfregasse na
pureza e na graça o pano sujo dos atos nem sequer vazios, apenas mesquinhos e com frutos sem rumo.
Como se escovar os dentes fosse montar num cavalo e levá-lo a
beber água ao riacho!
Como se importasse à causa humana ler os jornais do dia!
Era melhor, talvez, ficar olhando, completo, perfeito, os calangos
a tomar sol no muro, sem trair o silêncio, sentindo o dia, para
conhecer o mundo, para saber que estou vivo.
Se não se têm esses olhos de infantil verdade, todas as cousas nos enganam, tornam-se as palavras sem carne com que construímos a árida abstração que é o curral dos adultos.
Depois dos quinze anos, quase nada aprendemos: a dar laço em
gravatas, por exemplo.