A escada de Jacó, de Ney Teles de Paula
É sempre raro encontrar artigos em um site de abrangência nacional, como este, sobre um escritor que atua regionalmente, mas não me contive em dar publicidade a esta matéria, originalmente publicada na Revista da Academia Goiana de Letras, edição nº. 35, de dezembro de 2020, movido sobretudo pela qualidade do escritor aqui abordado. O leitor poderá, a partir de então, avaliar se deseja e comprovar, quiçá, que vale a pena conhecer Ney Teles de Paula
Foi estudando o tema muito abrangente do mito que me encontrei bem situado para navegar no livro “As imagens e os símbolos[i]”, do pesquisador romeno Mircea Eliade e, a partir dele, pude fazer analogias e encontrar ilustrações (incluindo a de um ensaio de um escritor de Goiás[ii]) para um ponto interessante daquilo que ele designa de “simbolismo do centro” – e assim, sentir-me habilitado a situar os ritos de ascensão que têm lugar em um “centro”, no que podemos entender melhor a poderosa imagem do simbolismo da escada na literatura em geral e, especificamente, no ensaio de Ney Teles de Paula.
Quando me deparei com o livro “A escada de Jacó[iii]”, de Ney Teles de Paula, entrei em contato com pelo menos um ensaio que bem pode ilustrar essa característica do mito e do seu entendimento amplo que nos legou Mircea Eliade, de modo a constatarmos novas luzes para a leitura do texto do goiano (e vice-versa).
Podemos afirmar que Ney Teles de Paula escreve como iniciado, pois demonstra ser leitor atento dos mistérios, bebendo em fontes de conhecimentos herméticos judaico-cristãos e das fontes rosacrucianas, sabedoria que já havia demonstrado em livro anterior (A rosa paradisíaca, 2000), sobre o qual o saudoso professor e acadêmico José Fernandes avaliou como obra de crítico-demiurgo.
Sobre Teles de Paula, o poeta Aidenor Aires já dissera acertadamente ser “homem de pensamento que transporta em seu texto inquietantes indagações sobre o esvair do tempo e a eternidade” e, até mesmo a partir dos títulos, nos proporciona ouvir “sempre vozes do simbólico, do enigma, da metáfora que desvela possibilidades mal suspeitadas no desafiante efêmero.”
Além da citação bíblica sobre a escada de Jacó, que embasa o título do ensaio de Ney de Paula – o relato de Gênesis 28, 12 –, o ensaísta goiano elenca trechos de leituras atentas de Archibald Joseph Macintyre, Louis-Claude de Saint-Martin, Harvey Spencer Lewis, Gershon Scholem, Martin Buber, Alexander Roob e Marc Girard, entre outros; provando que estudou o tema ao ponto máximo para a compreensão do episódio bíblico e sua representação na vida dos seres humanos no nível da consciência individual de cada um.
Inicialmente, contudo, convido o benévolo leitor a reler e meditar sobre este trecho de Eliade:
Todo microcosmo, toda região habitada, tem o que poderíamos chamar de um “Centro”, ou seja, um lugar sagrado por excelência. É nesse “Centro” que o sagrado se manifesta totalmente, seja sob a forma de hierofanias elementares – como no caso dos “primitivos” (os centros totêmicos, por exemplo, as cavernas onde se enterram os tchuringas, etc.) –, seja sob a forma mais evoluída de epifanias diretas dos deuses, como nas civilizações tradicionais. [ELIADE, 1991]
Não se trata de “um espaço profano, homogêneo, geométrico”. Em consequência, essa pluralidade dos “Centros da Terra dentro de uma única região habitada não cria nenhuma dificuldade”. Desse simbolismo é que o leitor poderá depreender a importância dos mitos da “árvore sagrada”, da “Montanha Cósmica”, da “Árvore da Vida” etc.
Se o leitor seguir com atenção o raciocínio de Eliade poderá entender que “na geografia mítica, o espaço sagrado é o espaço real por excelência”, isto é, como já foi demonstrado pelos mitólogos: “para o mundo arcaico o mito é real porque ele relata as manifestações da verdadeira realidade: o sagrado.
Desse espaço sagrado, deste “Centro” é que partem as comunicações do homem e a divindade, constituindo-se o “Centro” em “ponto de interseção” – o Inferno, o centro da terra e a porta do céu aí encontram uma “passagem cósmica” de uma a outra região.
Essa passagem cósmica pode ser ilustrada observando-se atentamente os ritos de ascensão que têm lugar num “Centro” e Eliade anota que “um número considerável de mitos fala de uma árvore, de um cipó, uma corda, um fio de aranha ou de uma escada que ligam a Terra ao Céu, e através dos quais certos seres privilegiados sobem efetivamente ao Céu.”
O escritor Ney Teles de Paula analisou a importância de um desses símbolos em “A escada de Jacó”, livro com título homônimo que inicia com estas palavras:
A escada de Jacó é um símbolo poderoso à luz da psicologia profunda, da religião e do mais puro enfoque místico da ascensão do homem aos portões celestiais.
[Está em Gênesis 28,12 – diz Teles de Paula]
Eis uma escada erguida sobre a terra, sua extremidade atingia os céus; enviados [anjos] subiam e desciam por ela.” Além do simbolismo da verticalidade cósmica entre céu e terra, evidencia-se, nesta passagem bíblica, outro simbolismo complexo, o do anjo. [DE PAULA, 2005]
Para o francês Marc Girard, ainda na citação de Ney de Paula:
[este] episódio visa a retratar a origem enigmática de um costume ou de um fato, o culto imemorial do santuário de Betel. Em hebraico, esse nome próprio significa ´casa de Deus`. Durante o sono, Jacó se dá conta de que o lugar santo é realmente ´casa de Deus e porta do Céu`; o nosso símbolo de verticalidade cósmica (e real). No fundo, que foi que se passou com Jacó? Em sonho, seu espírito se eleva até o alto, onde vê um penhor de proteção divina e de onde retira a segurança necessária para continuar a viagem. [DE PAULA, 2005].
Voltando a Eliade: “A escalada ou ascensão simbolizam o caminho rumo à realidade absoluta; e na consciência profana, a compreensão dessa realidade provoca um sentimento ambíguo de medo e felicidade, de atração e repulsa etc.” [ELIADE, 1991]
Em todo caso, registra-se uma “ruptura do nível ontológico: através do amor, da morte, da santidade, do conhecimento metafísico, ou, como diz a Brihadâranyaka Upanisad, do “irreal para a realidade”. É o caso do Canto XXI do Paraíso de Dante, assim sintetizado pelo tradutor Ítalo Eugênio Mauro[iv]:
Dante olha para Beatriz, que lhe diz estar impedida de lhe sorrir porque agora o seu acrescido fulgor não seria suportado pela sua vista. Eles estão no sétimo céu, o de Saturno, onde encontram-se as almas dos contemplativos. Surge à frente deles uma escada de ouro altíssima cujo topo a visa de Dante não alcança, da qual descem inúmeros espíritos, um dos quais se aproxima de Dante, que lhe pergunta qual a razão que o fez, entre todos, procura-lo e, em seguida, a explicação pela falta de danças e cantos, nesse sétimo céu, à diferença de todos os anteriores. Os sentidos mortais de Dante, é a resposta, não aguentariam a intensidade do seu som, nem o fulgor do riso de Beatriz, como ela já lhe dissera; quanto à primeira pergunta, ela seria irrespondível até para um serafim.
Dante não insiste e só lhe pede se identificar. Ele é Pedro Damião, que foi monge camaldolês em Cátria, e depois no mosteiro de Santa Maria em Ravena e, já bem velho, foi cardeal. Daí passa para uma violenta denúncia de seus sucessores, que faz acorrer à sua volta, da escada de ouro, inúmeros lumes que o festejam com um grito de solidariedade ao qual os sentidos de Dante não resistem.
Alçado estás ao sétimo esplendor
Que, sob o peito de Leão ardente
Mistura aos raios seus o outro valor.
Fixa, ora, atrás dos olhos teus, a mente
E deles faz espelhos à figura
Que nesse espelho te será aparente
Quem pudesse idear joia mais pura
Que contemplar o aspecto seu beato
Quando voltei-me pra outra postura,
Entenderia o quanto me foi grato
Obedecer a quem aos Céus me porta
Ao cotejar com um ou outro fato.
Dentro desses cristais que o nome porta
Rodeando o mundo, do seu caro guia
Sob o qual toda má intenção foi morta,
Como um raio de sol vi que subia
Uma escada tão alta que ascender-
Lhe ao fim minha visão não poderia.
E vi também por seus degraus descer
Tantas luzes, que achei que todo lume
Que haja no céu, lá viesse verter.
O escritor católico franco-americano Julien Green é citado por Eliade como um exemplo da “redescoberta espontânea desse simbolismo primordial” da escada:
Julien Green anotou em seu “Diário” de 04 de abril de 1933:
Em todos os meus livros, a ideia de medo ou de qualquer outra emoção forte parece estar ligada de maneira inexplicável a uma escadaria. Percebi isto ontem, quando revia todos os romances que escrevi… Eu me pergunto como pude repetir tantas vezes esse fato sem perceber. Quando era criança, eu sonhava que me perseguiam numa escadaria. Minha mãe teve os mesmos medos na sua juventude; talvez tenha restado algo em mim…
É o caso das cenas finais do romance “Mont-Cinère”, em que Julien Green diz: “Aterrorizada com a violência do marido, Emily fugiu para a sala de jantar e, depois, subiu precipitadamente a escada, até onde ele a seguiu gritando. Teve tempo de se refugiar no quarto e trancar a porta a chave; depois, desabou no chão, arrasada.” (Daí até o clímax do romance o leitor percorrerá duas ou três páginas.)
Essa incursão por alguns trechos do inesgotável acervo que nos legou o romeno Mircea Eliade provê ao escrutinador de obras literárias, que são frutos da imaginação de nossos escritores e estes parecem encontrar fonte duradoura para seus trabalhos, como por exemplo na obra de Alberto Mussa, para quem: “o patrimônio da mitologia traduz problemas essenciais da condição humana” – e “os mitos são a essência, o fundamento da literatura.”
De Dante a Green, passando por Guimarães Rosa, de Alberto Mussa a Rodrigo Duarte Garcia, o leitor atento verá que há sempre uma “deslocação” de imagens, símbolos, mitos para personagens que trafegam tentando nos levar por um itinerário que nos conduz a um “Centro”, caminho este que “está cheio de obstáculos” (Eliade) e, no entanto, “cada cidade, cada templo, cada casa, encontra-se no Centro do Universo. Os sofrimentos e as “provocações” vivenciados por Ulisses [Homero] são fabulosos e, no entanto, qualquer volta ao lar “equivale” ao retorno de Ulisses à Ítaca.”
Pode-se concluir que “tudo isso parece mostrar que o homem só pode viver em um espaço sagrado, no Centro”; e se neste homem ainda palpita certa “nostalgia do Paraíso”, trata-se de um anseio ancestral de reencontrar a condição divina. Ou, para repetir o mestre romeno, como um cristão diria, pode-se reencontrar a condição anterior à Queda. Tudo aponta para o acerto da conclusão de Ney Teles de Paula de que a escada do título do ensaio, a viagem e o sonho e sua alegoria “representam a viagem da elevação de sua consciência pessoal e mesmo a viagem do povo hebreu através dos tempos”.
Em tempo oportuno pretendo dedicar-me a exaurir mais ensinamentos do volume aqui escrutinado, pois a ênfase no ensaio inicial não me permitiu adentrar a outros belos temas tratados em outros ensaios (e discursos), tais como: “A imortalidade em Júlio Verne” (p. 31-7); “Jacob Boehme e o tesouro oculto da montanha celestial” (p. 39-56); e “Todas as coisas têm o seu tempo” (p. 57-63), este, mesmo sendo peça de oratória jurídica, tem seu quê de eternidade porque firmado na sabedoria bíblica do livro do Eclesiastes. São facetas de um pensador que me deixam bem à vontade para recomendar a você que leia e releia este “A escada de Jacó e outros escritos”.
[i] ELIADE, Mircea. “Imagens e símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso”. Prefácio de Georges Dumézil; tradução Sonia Cristina Tamer. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
[ii] QUEIROZ, Adalberto de. “Os fios da escrita: ensaios literários”. Itabuna (BA): Editora Mondrongo, 2020.
[iii] Cf. DE PAULA, Ney Teles. “A escada de Jacó: artigos”. Goiânia: Editora Kelps, 2005, 158 pp.
[iv] Cf. ALIGHIERI, Dante (1265-1321). “A divina comédia: paraíso”, Canto XXI, tradução Ítalo Eugenio Mauro, São Paulo: Editora 34, 1998.