As idiossincrasias do gênero feminino na obra de Clarice Lispector [1]

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Os assuntos deste texto são os contos e as crônicas de Clarice Lispector, focalizando, especificamente, a inconstância que caracteriza a abordagem de questões voltadas ao gênero feminino, em dois contextos distintos: o literário e o jornalístico. Para isso, foram escolhidos excertos de três contos, que integram os livros Laços de família (1960) e O primeiro beijo & outros contos (1977), e onze crônicas publicadas nos periódicos Comício, Correio da Manhã, Diário da Noite e Mais, entre 1952 e 1977 (Figs. 1, 2 e 3). Como pressupostos teóricos, este trabalho utiliza, principalmente, os estudos de Elaine Showalter, Norma Telles, Nelly Richards e Teresa de Lauretis. Entretanto, nesta coluna você irá ler apenas uma amostra da análise comparativa, que pode ser vista, na íntegra, em um vídeo — publicado pelo canal Litteraria Produções Culturais & Artísticas, no YouTube (https://youtu.be/4s4JGPd-DSw).

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Figura 1: Lista de contos analisados
Imagem disponível em: https://youtu.be/4s4JGPd-DSw
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Figura 2: Informações sobre as crônicas analisadas
Imagem disponível em: https://youtu.be/4s4JGPd-DSw
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Figura 3: Livros analisados
Imagem disponível em: https://youtu.be/4s4JGPd-DSw

Sem dúvida, os assuntos deste estudo dialogam com a última edição da revista Recorte lírico, publicada em dezembro de 2020, em comemoração aos 100 anos de Clarice Lispector, escritora ucraniana, mas de expressão brasileira. Para ler ou reler essa publicação, acesse abaixo:

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As idiossincrasias do gênero feminino na obra de Clarice Lispector [1]

Muitos textos de Clarice baseiam-se no duplo movimento de aceitação e questionamento dos princípios da sociedade patriarcal, demonstrando como a escritora rompeu os padrões, por meio das temáticas e da linguagem que utilizou, para se dirigir ao público feminino. Diante disso, é possível constatar que a oscilação entre convergência e divergência propiciou a revisão dos papéis da mulher, auxiliando na reconfiguração da individualidade e das relações sociais, incluindo os contextos familiar e profissional. Para consolidar essa ideia, são apresentados e analisados anúncios publicitários e colunas (publicados em revistas femininas) (Fig. 4), além do filme O sorriso de Monalisa (EUA, 2003) (Fig. 5), de Mike Newell, e da série Mad men (EUA, 2007), de Matthew Weiner, na qual destaco a trajetória da personagem Betty Draper (Fig. 6).

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Figura 4: A representação do gênero feminino em revistas e anúncios publicitários do passado
Imagem disponível em: https://youtu.be/4s4JGPd-DSw
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Figura 5: Cenas do filme analisado
Imagem disponível em: https://youtu.be/4s4JGPd-DSw
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Figura 6: Cenas da série analisada, com destaque à trajetória de Betty Draper
Imagem disponível em: https://youtu.be/4s4JGPd-DSw

A estreia de Clarice Lispector como escritora ocorreu na década de 1940, com a publicação do conto “Eu e Jimmy”. Esse texto faz parte de uma coletânea recente, publicada pela editora Rocco, em 2016. O primeiro romance, Perto do coração selvagem, veio em 1943. Entretanto, os periódicos, os contos e depois as crônicas são predominantes em sua carreira. Segundo Aparecida Maria Nunes: “Em Vamos Ler!, revista que pertencia à empresa A Noite, Clarice Lispector publica, entre 1940 e 1941, contos, entrevistas e traduções” (NUNES, 2006, p. 7). Tendo atuado em diversos veículos da imprensa brasileira, a autora produziu “cerca de 450” colunas femininas (NUNES, 2006, p. 10). Para desempenhar essa tarefa, que exigia atributos um pouco distintos daqueles que caracterizavam sua escrita literária, Clarice optou por criar heterônimos (Fig. 7). Sem dúvida, esse artifício permitia que seus textos apresentassem outra tonalidade linguística, com estilo e temas mais leves, em uma clara tentativa de corresponder ao perfil do público e às características das personagens-autoras idealizadas por ela.

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Figura 7: Heterônimos usados por Clarice Lispector nas crônicas analisadas
Imagem disponível em: https://youtu.be/4s4JGPd-DSw

Como Tereza Quadros, nome sugerido pelo escritor Rubem Braga, Clarice Lispector escreveu a página “Entre mulheres”, publicada no jornal Comício, de maio a setembro de 1952.  Alguns anos depois, sob o pseudônimo de Helen Palmer, foram publicadas inúmeras crônicas, sempre às quartas e sextas-feiras, no Correio da Manhã, no período que vai desde agosto de 1959 até fevereiro de 1961, “totalizando 128 edições” (NUNES, 2006, p. 9). No jornal Correio da Manhã, Clarice era responsável pela coluna “Correio feminino”, nome que Aparecida Maria Nunes emprestou para a coletânea organizada por ela e publicada pela editora Rocco, em 2006.   O aumento gradativo da produção de textos para colunas femininas deve-se ao fato de a escritora, depois da separação, em 1959, ter assumido a nova atividade como trabalho, para garantir o sustento dela e dos dois filhos.  Dessa forma, atendendo a um convite do jornalista Alberto Dines, Clarice passa a trabalhar no tabloide Diário da Noite, entre 1960 e 1961. Na coluna intitulada “Só para mulheres”, ela assume a função de “ghost writer da atriz e manequim Ilka Soares” (NUNES, 2006, p. 9), publicando crônicas de segunda a sábado, o que lhe rendeu “291 colunas de página inteira” (NUNES, 2006, p. 9). Aparecida Maria Nunes, no livro Correio feminino, registra um depoimento de Alberto Dines, no qual o jornalista expõe a diferença entre ghost-writer e heterônimo: “Decididamente não era ghost-writer mas autêntico heterônimo. Alma gêmea. Soube que se tornou amiga de Ilka Soares, sua vizinha no Leme. Para Clarice nada era casual, tudo devia ser intenso. E verdadeiro” (NUNES, 2006, p. 5).

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No contexto jornalístico, a produção de Clarice Lispector ganhou traços específicos, voltados à rotina da mulher, que envolvia desde as expectativas dos pais e da sociedade com relação a namoro e casamento até o casamento em si, abrangendo, portanto, os perfis de filha, esposa, mãe e dona de casa. Na concepção de Aparecida Maria Nunes, as colunas publicadas em periódicos revelavam ao público “outra Clarice Lispector, menos introspectiva e mais trivial” (NUNES, 2006, p. 12):

Clarice tinha consciência de que não podia esquecer o perfil do público para quem dava conselhos utilitários e ensinava a refletir sobre cenas domésticas e do universo da mulher. A ficcionista sabia também que tinha de manejar uma linguagem mais despojada e adotar um discurso calcado na estética da imprensa feminina, construída no tom de conversa íntima, afetiva e persuasiva. (NUNES, 2006, p. 7-8)

E como hábil ficcionista, cria inclusive a personalidade de Tereza Quadros […]: “Ela é disposta, feminina, ativa, não tem pressão baixa, até mesmo às vezes feminista, uma boa jornalista enfim.” (NUNES, 2006, p. 8)

Privilegiando as diferenças e as coincidências que existem entre os textos publicados pela autora, nos contextos informativo e literário, são analisados, ao longo deste trabalho, pequenos trechos de: onze crônicas; e três contos — “Amor” e “A imitação da rosa”, publicados originalmente em 1960, no livro Laços de família, e “A bela e a fera ou a ferida grande demais”, que integra a obra O primeiro beijo & outros contos, lançada em 1977. A partir desse corpus, é discutido o tema da inconstância, que Norma Telles define como“força criativa, na medida em que significa a recusa, por parte da mulher, em se deixar fixar ou silenciar e significa sua insistência numa maneira própria de ser” (TELLES, 1999, 328-329). Nesse processo, podemos verificar facilmente que os textos escritos por Clarice Lispector transitam em uma via de mão dupla: ao mesmo tempo em que a escritora destaca alguns aspectos que perpetuam o estereótipo feminino, ela não deixa de desenvolver outros tipos de reflexão, em um processo que pode ser relacionado ao que Adrienne Rich considera “uma ação intelectual libertadora” (SHOWALTER, 1994, p. 26). Essa atitude, mais crítica e contestadora, é completamente avessa aos princípios patriarcais.

Clarice Lispector cronista. Clarice contista. Durante a carreira, a escritora assumiu funções diferentes, e isso exigiu que ela se adaptasse a contextos e públicos bastante distintos. O projeto, no entanto, era um só: falar da mulher e escrever para a mulher, de modo discutir tanto o fútil quanto o complexo, o igual e o diferente, o previsível e o misterioso — a fim de tentar apreender as idiossincrasias do feminino. Dessa forma, a pluralidade que caracteriza a mulher pode ser compreendida como um processo, sem que seja associada a um paradoxo ou a uma atitude incoerente (Fig. 8).

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Figura 8: Citação de Nelly Richard que pode ser relacionada à importância de Clarice Lispector na reconfiguração do gênero feminino. Imagem disponível em: https://youtu.be/4s4JGPd-DSw

Sendo assim, o antagonismo privilegiado pela escritora revela-se como estratégia eficaz de reação e crítica — sobretudo em uma sociedade patriarcal, às vésperas do auge do movimento feminista, se considerarmos a época em que foi escrita a maioria dos textos de Clarice Lispector analisada neste estudo. O caráter dual da mulher representa, a um só tempo, a preocupação em avaliar a si mesma e aos outros, realçando a importância da alteridade e do aspecto relacional dos gêneros. Nesse trânsito, o desafio de ser mulher atende à duplicidade da tradição patriarcal e dos ideais feministas, expressando algo comum entre autora, heterônimos, narradores, personagens e leitoras, todos participantes do mesmo momento, situado entre as décadas de 1950 e 1970. Por isso, os textos de Clarice Lispector não podem ser encarados como totalmente conformistas ou absolutamente revolucionários. Eles oscilam entre a perpetuação e a transgressão e, nesse duplo movimento, recusam o equilíbrio e a constância, para corresponderem às dúvidas, às mudanças e aos anseios da questão relacional e das identidades dos gêneros.

Quer saber mais? Então, acesse https://youtu.be/4s4JGPd-DSw e assista ao trabalho completo!

REFERÊNCIAS [2]
KOBS, V. D.Litteraria: Clarice Lispector. 20 jun. 2020. Vídeo postado por Litteraria Produções Culturais & Artísticas. Disponível em: https://youtu.be/4s4JGPd-DSw. Acesso em: 11 mai. 2021.
NUNES, A. M. (Org.). Correio feminino. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.
RECORTE LÍRICO. Recorte lírico. Revista trimestral 2020 (4). Edição Clarice Lispector. Disponível em: https://107d09d7-1ae1-4567-a045-e67fa704c8b4.filesusr.com/ugd/ec96b3_b632327dd69b4ae0901bf2de1e3a1794.pdf. Acesso em: 11 mai. 2021.
RICHARD, N. Intervenções críticas. Arte, cultura, gênero e política. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
SHOWALTER, E. A crítica feminista no território selvagem. In: HOLLANDA, H. B. de (Org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 23-57.
TELLES, N. A mulher e a literatura. In: AUAD, S. M. V. A. V. (Org.). Mulher: cinco séculos de desenvolvimento na América — Capítulo Brasil. Belo Horizonte: O Lutador, 1999, p. 325-331.

Notas de fim:

[1] Texto adaptado dos seguintes materiais: 1) artigo científico publicado na revista Soletras (UERJ) n. 40, jul.-dez. 2020, p. 233-254 — atualmente, o artigo faz parte da Web of Science Core Collection; e 2) palestra Mulheres na literatura: Clarice Lispector,  realizada e publicada em formato de vídeo, no YouTube (https://youtu.be/4s4JGPd-DSw), em junho de 2020, pelo canal Litteraria, da Fae Curitiba.

[2] As referências completas do trabalho e os créditos das imagens utilizadas podem ser acessados nos eslaides mostrados no vídeo publicado neste link: https://youtu.be/4s4JGPd-DSw.


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