Na batida do Jazz: Identidade, de Rebecca Hall
Dirigido por Rebecca Hall, Identidade − ou Passing (EUA; UK; CA, 2021) − é uma adaptação do livro de Nella Larsen. A história se passa no Harlem, em 1920, e conta sobre duas amigas: Clare é uma negra que finge ser branca, casada com John, branco e rico; e Irene, negra, é casada com Brian, também negro.
Para recriar o passado, a diretora escolheu filmar em p&b. A cor preta corresponde à Irene, que assume sua raça. Do outro lado, o branco representa Clare, que finge ser branca. E o cinza representa neutralidade (Fig. 1).
Alerta: Este texto contém spoiler
Irene mora no Harlem e Clare deseja estar com os negros. Portanto, ela passa a frequentar o círculo social de Irene, gerando um problema, afinal: “Nas décadas de 1920 e 1930, o Harlem tornou-se um símbolo da luta afro-americana pelas igualdades civil e econômica, enquanto emergia como um promissor centro de cultura, arte e música negras” (NEW YORK STATE MUSEUM, 2022, tradução nossa). Uma sequência do filme mostra um conflito inter-racial: um negro é linchado por importunar duas mulheres brancas. Um filho pergunta ao pai a razão daquilo e o pai responde: “Porque nos odeiam, filho” (IDENTIDADE, 2021).
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Nesse contexto, o jazz predomina, realçando o Harlem de 1920 e a oposição das personagens:
Todas as formas da música americana foram ecléticas. Mas o jazz e o blues foram as mais ecléticas [...]. Eles foram o produto de um aspecto do crisol americano no qual os negros participaram [...]. (O GRANDE TEATRO DO MUNDO, 2022)
Cor e som formam a atmosfera e Irene sempre veste preto, contrastando com alguns elementos brancos do cenário: pia, toalha, bacias e garrafa de leite (Fig. 2):
O enquadramento também consolida a estética, pois, teoricamente, quando a câmera deixou de ser fixa, os diretores buscavam novas possibilidades, como “deixar determinados elementos da acção fora do enquadramento” (MARTIN, 2005, p. 45), para priorizar paisagens (Fig. 3):
Outra qualidade estética pode ser notada nesta cena invertida (Fig. 4). Criado-mudo e janela assumem posição peculiar e formam contraste: a claridade do copo com água e da luz entrando pela janela se opõe aos elementos escuros (abajur, vidro de remédio e quarto).
Quanto à sonoplastia, há sons frequentes e quase inaudíveis de sinos, relógios e campainhas. Às vezes, até o jazz surge abafado, para destacar ruídos de ações corriqueiras.
À medida que a trama se desenrola, um triângulo amoroso é sugerido (Fig. 5). Com exceção do cabelo, nessa cena é mais difícil distinguir as duas mulheres. Isso ocorre porque a luz clareia o traje de Irene e escurece o vestido de Clare. A iluminação iguala as rivais, aumentando a disputa.
A traição ganha destaque no estilo denominado Harlem stride piano, “que se desenvolveu […] principalmente no Harlem (Nova York), durante as décadas de 1920 e 1930” (HARLEM WORLD MAGAZINE, 2022, tradução nossa). Quanto à técnica: “O piano stride é altamente rítmico por causa da ação ‘oom-pah’ (alternância de baixo/acorde) da mão esquerda […], enquanto a mão direita toca linhas melódicas sincopadas com nuances harmônicos e de riffs, além de padrões de preenchimento” (HARLEM WORLD MAGAZINE, 2022, tradução nossa).
Além disso, o jazz reage à lentidão das cenas: “As músicas africanas eram lentas. […]. Quando os negros vieram para o Norte após a Guerra Civil, eles precisaram acelerar em resposta à agitação americana. O jazz e o rag foram a sua resposta” (O GRANDE TEATRO DO MUNDO, 2022). Evidentemente, nesse caso, a questão racial não pode ser ignorada:
O blues em um certo sentido foi diretamente derivado do trabalho escravo, dos “field hollers” [as canções de trabalho no campo], [...]. O jazz e os rags foram outra coisa: eram gozação, criticismo, protestos velados contra o triunfalismo do mundo do homem branco. (O GRANDE TEATRO DO MUNDO, 2022)
Apesar da origem negra do jazz, Paul Whiteman (1890-1967), branco que foi considerado o Rei do Jazz, “insistia que o jazz era uma invenção branca, sua banda era toda branca, e em seu livro Jazz (1926) ele não menciona sequer um único negro” (O GRANDE TEATRO DO MUNDO, 2022). Indubitavelmente, isso reflete a oposição estabelecida no filme. Embora Clare queira continuar casada com um branco, ela também volta ao Harlem, aproximando-se de Irene e Brian, e, ao final, os três chegam a uma festa (Fig. 6).
O espaço branco se opõe à fachada escura do prédio, com janelas iluminadas e apagadas. Além disso, Brian e Irene vestem preto, enquanto Clare usa branco. A brancura é realçada pela luz azul, indicando tristeza e solidão e Irene só alcança os outros dois na escadaria, quando pergunta à Clare sobre a hipótese de o marido branco descobrir tudo (IDENTIDADE, 2021).
Já no local da festa, um sofá branco contrasta na parede escura, mas há luzes, espelhos e uma máscara branca (Fig. 7):
Segundo Martin (2005), nada na tela é aleatório. A máscara branca é simbólica, indicando a dissimulação de Irene. O nervosismo da personagem é visível, pois ela anda constantemente, enquanto a câmera focaliza suas mãos (Fig. 8).
Esse enquadramento comprova que “a câmara deixou de ser apenas testemunha passiva, […] para se tornar a sua testemunha activa e a sua intérprete” (MARTIN, 2005, p. 41). As imagens falam por si, orientando o espectador atento.
Em certo momento, o marido de Clare chega, cobrando explicações, e uma tragédia acontece. Clare cai da sacada e os convidados ficam perplexos, vendo o corpo sobre a neve (Fig. 9):
A cena, de cima para baixo, consolida o plano picado, usado: “para tornar o indivíduo ainda mais pequeno, esmagando-o moralmente ao colocá-lo no nível do solo” (MARTIN, 2005, p. 51). É importante também que Clare era uma negra fingindo ser branca até que a neve branca a acolhe. Por fim, a câmera sobe, tornando Clare invisível. A tela fica branca, cinza e depois preta (Fig. 10):
Vitória de Irene, ou da raça?
REFERÊNCIAS
HARLEM WORLD MAGAZINE. Harlem stride piano style developed during the 1920s and 1930s in Harlem, NY (Video). Disponível em: <https://www.harlemworldmagazine.com/harlem-stride-piano-style-developed-1920s-1930s-harlem-ny-video/>. Acesso em: 10 dez. 2022.
IDENTIDADE. Direção de Rebecca Hall. EUA; UK; CA: Film4 e Forest Whitaker’s Significant Productions; Netflix, 2021. 1 DVD (98 min); son.; 12 mm.
MARTIN, M. A linguagem cinematográfica. Lisboa: Dinalivro, 2005.
NEW YORK STATE MUSEUM. Black capital: Harlem in the 1920s. Disponível em: <http://www.nysm.nysed.gov/exhibitions/ongoing/black-capital-harlem-1920s-0>. Acesso em: 10 dez. 2022.
O GRANDE TEATRO DO MUNDO. O significado social e moral do jazz. Disponível em: <http://www.teatrodomundo.com.br/o-significado-social-e-moral-do-jazz/>. Acesso em: 12 dez. 2022.
URIZIO, R. Harlem stride piano. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=86w2F__-1Bw>. Acesso em: 10 dez. 2022.
Este texto é a versão resumida da resenha publicada no blog Interartes: Artes & Mídias, em dez. 2022.
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