Do Livro Impresso Para o Formato Videográfico: A Literatura Performática de Arnaldo Antunes
A videografia é um processo frequentemente utilizado para a adaptação das obras que foram lançadas na mídia impressa. Portanto, o formato videográfico está intrinsecamente relacionado à tecnologia digital e é capaz de reunir palavra, som, imagem e movimento, explorando cada um desses elementos em profundidade. No livro Algo antigo (2021), de Arnaldo Antunes, há dois poemas que deram origem a dois vídeos que exemplificam a inserção de movimentos reais, em modalidades distintas. O poema “a fome”, em ambas as versões – impressa e videográfica −, trabalha com a sobreposição e com a montagem/desmontagem das palavras, revelando mais uma vez a herança concretista no processo criativo do autor (Fig. 1).
Dessa maneira, a espacialidade da página/tela alia-se aos elementos morfológicos, o que resulta em duas possibilidades de leitura para o texto, com nuances significativas de sentido. Assim como o verbo é usado no tempo presente e também no passado (“come” e “comeu”), as palavras são apresentadas em duas tonalidades: cinza e preta no livro; e em dois matizes de vermelho, no vídeo. Ao comentarem as qualidades do formato videográfico, Lúcia Santaella e Winfried Nöth destacam o “movimento real”, que vem sempre associado às possibilidades de “alteração, deslocamento de formas, de cores, de intensidade luminosa” (Santaella; Nöth, 1998, p. 77).
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Na mídia digital, portanto, o poema ganha cor e movimento, realçando a agressividade da fome. Por meio do eco (“a fome me” + “comeu eu”), a fome é personificada, devorando o sujeito que não foi capaz de saciá-la. Durante o processo de devoração, a sobreposição se desfaz. As letras em primeiro plano desaparecem da tela, deixando em destaque aquelas que antes estavam escondidas.
Diante das características do novo formato adotado pelo artista, o sentido do texto é potencializado, adaptando-se à linguagem do vídeo e ao dinamismo que delineia a plataforma de compartilhamento e o perfil do leitor contemporâneo: “O texto se expande, contrai-se, dá voltas. As palavras pulsam, esticam-se e encolhem, […] aproximando-se de uma escritura ergódica, aquela que demanda esforços não-triviais de produção e configurações alternativas das próprias mídias utilizadas” (Beiguelman, 2003, p. 39-40).
De fato, tal como apresentado por Espen J. Aarseth, o caráter ergódico exige “diligências fora do comum para permitir ao leitor percorrer o texto” (Aarseth, 2006, p. 19-20). Portanto, os textos que adotam esse padrão rompem com os perfis tradicionais de autor, leitor e também com a antiga noção de literariedade. Consequentemente, o texto literário ganha novos modos de expressão, além de poder usufruir o meio digital no que diz respeito às facilidades de acesso e compartilhamento, tal como será mostrado na análise do último poema.
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A exemplo da transmidialidade, que é cíclica, a versão impressa de Algo antigo termina exatamente do mesmo modo que começa: com o poema que deu nome ao livro (Fig. 2). Destacam-se, a seguir, os primeiros e últimos versos do texto em questão: “algo antigo / ido / sido / outrora / acontecido / já / quase / esquecido / […] / algo / que já era / (embora / vivo) / para (agora) / ser / um livro” (Antunes, 2021, p. 219).
Nesse exemplo, a cinese, elemento-chave da arte videográfica, é realçada por um tipo de escrita ao vivo, porque as palavras inscrevem-se aos poucos na tela, coincidindo com o tempo da leitura. Esse procedimento é classificado por Lúcia Santaella e Winfried Nöth como “fatura videográfica”: “Caracterizando-se basicamente como registro de imagens em tempo real, […] a fatura videográfica permite, antes de tudo, a coincidência do tempo da emissão com o tempo da recepção” (Santaella; Nöth, 1998, p. 80).
Além dessa qualidade técnica, o tema desse poema é bastante adequado para mencionar a importância do tipo da fonte. Na tentativa de concretizar algo antigo, o artista utiliza a letra Old Newspaper no livro impresso e nos vídeos on-line. Aliás, na capa do livro isso se repete, somando-se a um fundo sépia e a respingos/manchas de tinta que remetem à tipografia. O mesmo efeito é explorado no poema “somos”, exemplo que inova pelo fato de utilizar sobreposições tipográficas, partes incompletas, borradas e apagadas, de modo a tornar ininteligível o significado do texto inteiro (Fig. 3):
Semanticamente, no poema “algo antigo”, Arnaldo Antunes explora a passagem do tempo e a escrita como registro, principalmente pelo uso da palavra agora, colocada entre parênteses neste trecho: “algo / que já era / (embora / vivo) / para (agora) / ser / um / livro”. Esse recurso torna o advérbio opcional, de modo que o livro mencionado no texto transcende qualquer barreira temporal. Algo escrito permanece: ontem, hoje e amanhã. Dando continuidade a essa reflexão, além da escrita ao vivo a versão videográfica do poema faz outra importante contribuição, oferecendo uma nova vertente de sentido.
Isso ocorre pelo acréscimo de um som de fundo: um ruído incessante, indicando falta de sintonia. Sendo assim, o movimento do dial simboliza a tentativa de achar a frequência certa, representando uma conexão esperada entre o leitor/espectador e as coisas mais antigas, que, apesar de hoje serem consideradas anacrônicas e em desuso, fazem parte da história e da tradição. Nesse sentido, o vídeo on-line desempenha um papel quase lúdico, contra o esquecimento e contra o abismo que geralmente se forma entre o passado e o presente.
Finalizando a análise do formato videográfico de “algo antigo”, é relevante o fato de os versos “algo / que já era / (embora / vivo) / para (agora) / ser / um / livro” inscreverem-se na tela. De acordo com o teórico Lars Elleström: “[…] uma mídia representa de novo, mas de forma diferente, algumas características que já foram representadas por outro tipo de mídia” (Elleström, 2017, p. 204).
Portanto, antes da literatura digital, a ideia de transferir para um vídeo as qualidades do livro soaria como irônica ou incoerente, afinal é sabido que a tela do computador ou do smartphone, na qual o vídeo é reproduzido, não tem a mesma materialidade de um livro impresso. Contudo, hoje, embora as diferenças permaneçam, as mídias dividem o mesmo espaço virtual e se enriquecem mutuamente. Dessa forma, em um tempo no qual as hipermídias e a transmidialidade consolidam-se cada vez mais, a variedade de suportes para o texto literário ultrapassa os limites do livro físico e sinaliza uma revolução – tanto linguística quanto estrutural −, propondo um novo conceito de literariedade.
Excerto do artigo “Transmidialidade e reescrita criativa em Algo antigo, de Arnaldo Antunes”, publicado na revista Soletras (UERJ), n. 46, 2023, p. 53-77.
REFERÊNCIAS:
AARSETH, E. J. Cibertexto: perspectivas sobre a literatura ergódica. Lisboa: Pedra de Roseta, 2006.
ANTUNES, A. Algo antigo. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
_____. Algo antigo. Arnaldo Antunes [Parte 1]. Canal oficial do artista Arnaldo Antunes, [s. l.], 2022a. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=G7Dz_-2d4Eo. Acesso em: 15 mai. 2022a.
_____. Algo antigo. Arnaldo Antunes [Parte 2]. Canal oficial do artista Arnaldo Antunes, [s. l.], 2022b. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QvWaMW4x8_4. Acesso em: 15 mai. 2022b.
BEIGUELMAN, G. O livro depois do livro. São Paulo: Peirópolis, 2003.
ELLESTRÖM, L. Midialidade: ensaios sobre comunicação, semiótica e intermidialidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2017.
SANTAELLA, L.; NÖTH, W. Imagem. Cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Iluminuras, 1998.
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