Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

Trending no Recorte Lírico

Anúncio

O rock hereditário dos Titãs na ópera Doze flores Amarelas

(Atenção: alerta de spoilers) Os Titãs fizeram a estreia nacional da ópera rock Doze flores amarelas no Festival de Teatro de Curitiba (edição de 2018),

O rock hereditário dos Titãs na ópera Doze flores Amarelas
(Atenção: alerta de spoilers)

Os Titãs fizeram a estreia nacional da ópera rock Doze flores amarelas no Festival de Teatro de Curitiba (edição de 2018), com 25 novas músicas. Algumas canções têm a colaboração de Hugo Possolo, Beto Lee, Mario Fabre e Jaques Morelenbaum. Com argumento de Branco Mello, Sergio Britto, Tony Bellotto, Hugo Possolo e Marcelo Rubens Paiva, o show foi dirigido por Possolo, em colaboração com Otavio Juliano.

O formato da ópera é naturalmente híbrido e, por isso, é bastante adequado à multiplicidade que caracteriza a sociedade atual. O múltiplo nos define de forma tão intensa hoje, que Italo Calvino, ao escrever sobre o novo milênio, afirmou:

Alguém poderia objetar que quanto mais a obra tende para a multiplicidade dos possíveis mais se distancia daquele unicum que é o self de quem escreve, a sinceridade interior. A descoberta de sua própria verdade. Ao contrário, respondo, quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis. (CALVINO, 1998, p. 138, grifo no original)

Conforme Irina Rajewsky, a ópera tem a intermidialidade como um componente inerente ao seu formato, já que “como gênero único demonstra que a combinação de diferentes formas midiáticas de articulação pode levar à formação de gêneros de arte ou de mídias novos e independentes, em que a estrutura plurimídia do gênero se torna a sua especificidade” (RAJEWSKY, 2005, p. 53, grifo no original). Evidentemente, na releitura dos Titãs e de outras bandas de renome mundial, inclusive The Who e Pink Floyd, a inserção do rock em um modelo originalmente clássico representa um elemento a mais na evolução da ópera. O formato, plural em sua origem, passa a contar com um novo componente, que o atualiza pela contraposição e pela ruptura. Aliás, esse sempre foi o papel do rock. Além disso, para representar a sociedade contemporânea Doze flores amarelas opta por outros acréscimos de peso: a tecnologia das redes sociais, do vídeo e a arte da grafitagem.

Anúncio

 

 

Anúncio

O rock hereditário dos Titãs na ópera Doze flores Amarelas 6

 

Essa junção torna o espetáculo mais verossímil, porque a representação é pautada nas características de nosso cotidiano. Potencializando a multiplicidade, todos os elementos se entrecortam e se complementam, mesmo surgindo a partir de uma fragmentação aparente. Isso vai ao encontro do que Paul Virilio menciona neste trecho: “[…] em matéria de temporalidade, o tempo não é mais inteiro, mas indefinidamente fracionado em quantos instantes, instantaneidades, quanto permitem as técnicas de comunicação e de telecomunicação” (VIRILIO, 1999, p. 57). A mesma posição também aparece na obra de Calvino, autor que definiu o século XXI como a “época em que outros media triunfam, dotados de uma velocidade espantosa e de um raio de ação extremamente extenso, arriscando reduzir toda a comunicação a uma crosta uniforme e homogênea” (CALVINO, 1998, p. 58, grifo no original).

Na ópera rock dos Titãs, a tecnologia surge nas interfaces criadas para os personagens, a fim de simular a comunicação virtual das redes sociais. Aliado a isso, a arte do vídeo ganha importância, pois, na tela de fundo, o espectador pode ver como os protagonistas interagem, de modo a completar o sentido da ação encenada no palco e também narrada pelas músicas.

 

O rock hereditário dos Titãs na ópera Doze flores Amarelas 2

 

 

Outras duas funções do vídeo dizem respeito ao movimento e à inovação. Seguindo a tendência teatral vigente, a peça usa as projeções para compor o cenário e isso ocorre com imagens fixas e às vezes com breves clipes, em um recurso que duplica e dinamiza a ação. Desse modo, diversas mídias e artes concorrem e promovem novas atualizações nos formatos da ópera e da ópera rock, simultaneamente:

[…] em grande parte da arte contemporânea, os recursos tecnológicos propiciam uma investigação criativa, tanto dos meios quanto dos processos, auxiliando a desenvolver visões mais adequadas ao mundo pós-moderno, uma vez que libertam os artistas do atrelamento a modelos e conceitos preexistentes. […] tal liberdade, inclusive, pode viabilizar interessantes trocas sígnicas entre arte e tecnologia.  (GUIMARÃES, 2007, p. 39)

Passando, agora, do aspecto técnico ao temático, o espetáculo explora dois assuntos da atualidade: a influência negativa da tecnologia e a violência contra a mulher. Nas primeiras linhas da Sinopse do show, é feita esta apresentação: “A inédita ópera rock dos Titãs […] conta a história de três Marias. Estudantes da faculdade, querendo diversão, consultam o aplicativo Facilitador para saber a melhor maneira para curtir uma festa” (TITÃS, 2018). A narração de Rita Lee e a música Me estuprem, apresentada no final do primeiro ato, são o ponto alto do tema relacionado à mulher. A canção, em tom de ironia, é uma resposta à postura crítica e depreciativa em relação às mulheres, infelizmente difundida pelo senso comum. A escolha de Rita Lee para narrar a história também serve de resposta àqueles que subestimam a força da mulher, afinal ela já se consolidou como uma das vozes mais representativas do rock nacional.

No segundo ato, surge uma associação bastante pertinente entre tecnologia e religião, afinal, conforme informação da Sinopse, a ideia é lutar contra a submissão “das convenções sociais” e das “sugestões de oráculos, cibernéticos ou não” (TITÃS, 2018). Com esse intuito, Branco Mello aparece no palco, vestindo uma túnica branca de cetim, com a imagem do Espírito Santo bordada em lantejoulas, e cantando O bom pastor (mais um título irônico), o que acentua ainda mais a crítica à hipocrisia, no melhor estilo da banda. Nessa hora, é impossível que os fãs não se lembrem de Igreja, um dos corrosivos sucessos do grupo, nos anos 1980.

 

 

O rock hereditário dos Titãs na ópera Doze flores Amarelas 3

 

Porém, é evidente que o show, como a primeira ópera rock brasileira, apresenta problemas. Os episódios da festa e do estupro, que estão interligados, assim como o da violência sofrida pelo garoto skatista carecem de dramaticidade. A ópera tem grande parentesco com as encenações teatrais, razão pela qual precisa apresentar ações bem definidas. Nas cenas citadas acima, a qualidade está apenas no solo de bateria que metaforiza o estupro e realça o lado roqueiro da representação. Também no figurino os personagens dos garotos não convencem, sobretudo o skatista, que entra em cena arrumadinho demais, com camisa de botão, manga longa e por dentro da calça. Ou seja: o figurino escolhido não reflete adequadamente o perfil do personagem.

No quesito sonoro, quando os Titãs cantam, a música é perfeita. Entretanto, quando as Marias assumem os vocais, o som dos instrumentos domina completamente, ofuscando não apenas a voz das personagens, mas também o sentido das músicas, que deveriam ser bem ouvidas, pois ajudam a construir a história. Por fim, há o problema da ausência de um grande grupo de pessoas no palco. Uma boa ópera rock precisa dessa densidade na dança, com movimentos coreografados, sincronizados e realizados em bloco. Claro que há tentativas de coreografias, mas todas elas são tímidas e incipientes, nas quais a sincronia é diluída no pequeno grupo, formado no máximo por três personagens. Obviamente, nenhum dos Titãs tem a obrigação de ensaiar e repetir passos perfeitos. Esse efeito “chapa branca” não seria condizente com a identidade da banda. Por isso mesmo, o número de figurantes e dançarinos no palco deveria ser maior. Nesse aspecto, convém comparar o espetáculo Doze flores amarelas a American idiot, ópera rock de grande sucesso do Green Day. As duas peças têm muito em comum: a predominância do preto e do cinza; o cenário com estrutura aramada e patamar superior; o uso de outras mídias; e o figurino despojado. Entretanto, a principal diferença é que American idiot conta com dezenas de dançarinos. O Green Day sobe ao palco com um verdadeiro corpo de baile, o que dinamiza a ação, ressalta a sincronia dos movimentos e dá total liberdade aos integrantes da banda, que não precisam seguir a coreografia, mas que interagem com movimentos não excessivamente ensaiados e que mantêm o estilo da banda.

Como se vê, a lista de influências da ópera rock dos Titãs começou em grande estilo (American idiot é simplesmente imperdível!). O fato da autoinfluência, conforme já mencionamos aqui, também é um item de peso. Aliás, nesse quesito, não é apenas o clássico Igreja que ressoa no espetáculo. Outro antigo sucesso, Disneylândia, com certeza é lembrado pelos fãs na letra de Disney drugs. Pode-se perceber, em Doze flores amarelas, até mesmo uma marca registrada da banda: os violentos antagonismos sonoros, com oscilações que vão do som suave ao rock pauleira, como ocorre na antológica Desordem e na intensa Vamos ao trabalho (de 2001 e, portanto, o sucesso mais recente entre todos os que foram citados aqui). Ainda no que diz respeito à autoinfluência, o lado “descuidado” e visceral da ópera rock dos Titãs remete os fãs ao clipe da lendária Cabeça dinossauro, numa performance instintiva do grupo e plenamente alinhada à ruptura da estética trash.

Outras duas influências que percebi são externas, ou seja, não se associam à discografia dos Titãs. Porém, elas têm uma conexão temporal com a produção da banda, por terem predominado no fim dos anos 1970 e no início da década de 1980. A primeira diz respeito ao uso das cores, durante o espetáculo, gerando contrastes vibrantes com o preto e o cinza, a exemplo a mistura chamativa de tons que caracterizou a arte pop da Andy Warhol. A segunda influência é sonora e ficou bem clara na música-jogral Ele morreu, com vozes masculinas e femininas, bem ao estilo do divertido sucesso A última ficha, da banda Blitz.

Sem dúvida nenhuma, Doze flores amarelas é um espetáculo múltiplo nos mais diversos aspectos. A primeira ópera rock nacional associa temas, artes, mídias, influências, erros, acertos e os Titãs de ontem, hoje e sempre.

 

REFERÊNCIAS
CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
GUIMARÃES, D. A. D. Comunicação tecnoestética nas mídias audiovisuais. Porto Alegre: Sulina, 2007.
RAJEWSKY, I. O. Intermediality, intertextuality and remediation: a literary perspective on intermediality. Intermédialtés/Intermedialities, Montreal, n. 6, p. 43-64, 2005.
TITÃS. Doze flores amarelas. [Programa do espetáculo]. Curitiba, 2018.
VIRILIO, P. O resto do tempo. FAMECOS, n. 10, Porto Alegre, jun. 1999, p. 57-61.

 

 

Leia outros textos como este da Verônica Daniel Kobs clicando aqui.
0 0 votos
Classificacao do Artigo
Inscrever-se
Notificar de
guest

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

0 Comentários
mais antigos
mais recentes Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários

Giro Recorte Lírico

Ana Rapha Nunes lança ‘Mariana’ no Fábrica Cafeteria
19 dez

Ana Rapha Nunes lança ‘Mariana’ no Fábrica Cafeteria

Mariana é o segundo romance da carioca. (Foto: Divulgação)A escritora carioca, Ana Rapha Nunes, lançou no último sábado (17) o

O Diabo Veste Prada: Um Clássico na Sessão da Tarde desta quinta-feira | Onde Ver no Streaming
25 maio

O Diabo Veste Prada: Um Clássico na Sessão da Tarde desta quinta-feira | Onde Ver no Streaming

Nesta quinta-feira, dia 25 de maio, prepare-se para uma sessão da tarde repleta de moda, glamour e uma pitada de

Barbieheimer: O fenômeno cinematográfico que cativou o público
19 jul

Barbieheimer: O fenômeno cinematográfico que cativou o público

A improvável união de Barbie e Oppenheimer se tornou uma sensação nos cinemas Barbieheimer é muito mais do que a

“Five Feet Apart” Ending Explained: Does Will Die in the End?
05 set

“Five Feet Apart” Ending Explained: Does Will Die in the End?

"Five Feet Apart" is an emotional film that captivated audiences with its compelling story and memorable characters. The ending left

‘Barba ensopada de sangue’ e o mito na literatura contemporânea brasileira
17 mar

‘Barba ensopada de sangue’ e o mito na literatura contemporânea brasileira

Já não bastasse o romance de Daniel Galera ter sido considerado “o melhor livro do ano”, em 2013, pelo júri

Cultura literária medieval
20 jan

Cultura literária medieval

Eis-nos, benévolo leitor, diante de um novo ano, renovando as esperanças e planejando escrever novas histórias. Eis-nos, diante do deus

Posts Relacionados

0
Adoraria saber sua opinião, comente.x