Variações de terror e violência em American Horror Story
(Atenção: alerta de spoilers.)
Idealizada e produzida por Ryan Murphy e Brad Falchuk, a série televisiva American horror story, transmitida pelo canal FX, já completou sete temporadas. No ar desde 2011, a atração é considerada um dos maiores sucessos dos últimos tempos no gênero do terror. Esse tipo de narrativa associa-se às histórias de horror, ao novo gótico e ao fantástico, elementos que, atrelados, representam de modo exemplar a sociedade contemporânea.
A fim de consolidar a primeira relação, entre horror e terror, Rossi afirma que “o horror perde o sentido e se torna gratuito se não vier acompanhado ou sobreposto ao terror” (ROSSI, 2014, p. 68). No que se refere ao fantástico, conforme Dani Cavallaro, existe a “confluência do terror como uma potente, mas indistinta apreensão de medo sublime e do horror como uma manifestação física do inexplicável e do anormal” (CAVALLARO, 2002, p. ix, tradução nossa). Pelo fato de o sobrenatural existir em decorrência do que é inexplicável, Todorov recorre aos estudos de Freud, para quem o “estranho”, como ele prefere chamar, “relaciona-se indubitavelmente com o que é assustador – com o que provoca medo e horror” (FREUD, 1969, p. 98). Por fim, quanto à estética gótica, Sandra Vasconcelos define-a como “um tipo de ficção que questiona a constituição do ‘real’ e interroga as contradições sociais” (VASCONCELOS, 2002, p. 122, grifo no original).
Todas as relações introduzidas aqui demonstram a perfeita sintonia dos elementos que constroem a narrativa de cada temporada de American horror story. Embora o gótico tenha tido vários ciclos, na cultura mundial, no século XVIII ele teve papel fundamental na literatura inglesa e refletia os problemas sociais daquela época. Vários estudiosos referenciam essa função da estética macabra. Steven Bruhm, por exemplo, afirma que o gótico “tem sido sempre um barômetro das ansiedades” (BRUHM, 2002, p. 260, tradução nossa). Nöel Carroll, do mesmo modo, ainda que se refira especificamente à narrativa de horror (que integra o gótico), corrobora essa opinião, ao afirmar que “os ciclos de horror emergem em períodos de estresse social” (CARROLL, 1990, p. 207, tradução nossa). Vivemos em um século que nasceu em meio a uma tragédia mundial, o ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 às torres gêmeas, em Nova Iorque. Esse fato, na opinião de inúmeros pesquisadores, constitui o ápice do novo gótico. A partir desse evento, passamos a um estado de insegurança, medo e incertezas. A morte tornou-se uma ameaça real.
Dez anos depois, foi lançada a primeira temporada da série American horror story, Murder house (2011), envolvendo o mundo dos mortos, dos vivos, culpa e desejos reprimidos, no clássico formato de terror. A casa assombrada, repleta de espíritos vingativos, é o cenário ideal para a inserção do estranhamento, totalmente associado ao sobrenatural.
Na segunda temporada, Asylum (2012), o sobrenatural dá espaço à loucura, já que o cenário principal é um manicômio. Como se vê, a violência se mantém, mas é disfarçada pela imaginação dos personagens. A brutalidade acaba sendo explicada, na maioria das vezes, como simples devaneio dos internos ou como o único modo de controlá-los.
Em Coven (2013), a história remete a duas comunidades bruxas rivais. Novamente, a violência é apresentada de forma plena, mas, pelo fato de ficar circunscrita a situações de feitiço e magia negra, acaba se distanciando da realidade contemporânea. As ações violentas são usadas como metáfora, dando mais destaque a mitos e lendas sobre vodu e bruxas queimadas na fogueira.
Entretanto, na quarta temporada, intitulada Freak show (2014), a encenação da violência dá um salto. Evidentemente, o circo de aberrações ainda funciona como metáfora social. Porém, o preconceito e a marginalização norteiam a história e põem em xeque as relações de alteridade e crueldade de modo mais evidente e próximo ao público de hoje. Com a divisão entre os que são normais e aqueles que a sociedade trata como “anormais”, a série auxilia no debate de uma problemática bastante presente em nosso século, denominada por Zygmunt Bauman como “novo individualismo” e caracterizada, principalmente, pelo “desvanecimento dos vínculos humanos” e pelo “definhamento da solidariedade” (BAUMAN, 2008, p. 189).
Dando continuidade ao processo iniciado na temporada anterior, Hotel (2015) escolhe um cenário tipicamente urbano, no centro da grande Los Angeles. Embora os hotéis não façam parte da realidade cotidiana, na vida de uma pessoa, eles se fazem presentes geograficamente. A experiência de se hospedar em hotéis é esporádica e está geralmente associada a trabalho ou lazer. Porém, a arquitetura do espaço e a função dos hotéis, em qualquer centro urbano, são significativas e integram o cenário (e tudo o que acontece nele, independente do fato de sermos hóspedes ou não) à realidade.
Em 2016, na estreia da sexta temporada, My Roanoke nightmare, mais um passo é dado para a evolução do aspecto realista da violência. Fazendo uso da metalinguagem e privilegiando uma estrutura múltipla e complexa (inclusive com personagens que já tinham sido apresentados, em temporadas anteriores, como exemplificam a Açougueira – de Coven, e Lana Winters – de Asylum), a narrativa gira em torno de um programa de TV. O formato é inspirado nos casos apresentados no canal Investigação Discovery (ID), que usa a fórmula da encenação de crimes reais. A narrativa dessa temporada é muito parecida aos famosos mistérios de outras duas séries: Terror no hotel Cecil (o hotel Cecil mudou de nome, mas ainda existe em Los Angeles, sob o nome de Stay on Main; aliás, esse local e os crimes estranhos que ocorreram lá serviram de inspiração para a quinta temporada de American horror story, Hotel) e O castelo dos horrores, ambas veiculadas no ID.
Pela similaridade com os programas criminais, My Roanoke nightmare utiliza a alternância entre os depoimentos dos parentes da vítima e a história representada pelos atores. Claro que o lado lendário mitifica um pouco a violência, afinal a história faz relação com a colonização (porque retoma o aspecto histórico do território que hoje corresponde a Carolina do Norte) e com as dúvidas que pairam até hoje sobre aquela que ficou mundialmente conhecida como “A colônia perdida”. Contudo, o fundamental, nessa temporada, é o formato televisivo e criminal adotado pela narrativa. O elenco é duplicado, pois há os atores que representam as pessoas que vivenciaram o “pesadelo” e há aqueles que representam as vítimas e os sobreviventes na história montada pela equipe da TV. Esse paralelismo e a base real indiscutivelmente somam pontos para a verossimilhança da violência, nessa etapa de American horror story, aproximando-a bastante do público atual.
Por fim, na sétima temporada, Cult (2017), pela predominância do cenário e de temas tipicamente urbanos (e atuais), a violência encenada também se aproxima muito da nossa realidade, refletindo-a e problematizando-a. Não há elementos sobrenaturais. Há apenas humanos, reunidos em “seitas” (satânicas ou não, já que a política é um assunto norteador nessa temporada). Invasões, ameaças, torturas e assassinatos instauram o medo entre iguais: familiares ou vizinhos. Para Bauman, esse tipo de enfrentamento é resultado da globalização, fenômeno que “parece ter mais sucesso em aumentar o vigor da inimizade e da luta intercomunal do que em promover a coexistência pacífica das comunidades” (BAUMAN, 2001, p. 219). Com relação ao contexto político dessa temporada, vale lembrar a introdução deste texto, que apresentou a sintonia entre horror/terror/gótico e as ansiedades sociais. Em janeiro de 2017, com a transição de governo, nos EUA, mais um momento de grande ansiedade teve início, o que impulsionou o resgate de romances distópicos da década de 1980 (EBERSPÄCHER, 2017). Isso é um fato salutar, já que o gótico e as distopias coincidem, por privilegiarem o estranhamento.
Com esse panorama da série, até agora, constatou-se a evolução na abordagem da violência e do elemento fantástico, que, por sua vez caracterizam o gótico:
Em uma cultura secular, a fantasia tem uma função diferente. Ela não inventa regiões sobrenaturais, mas apresenta um mundo natural transformado em algo estranho, algo “outro”. Ele se torna “domesticado”, humanizado, partindo de explorações transcendentais para transcrições de uma condição humana. (JACKSON, 1981, p. 17, grifo no original, tradução nossa)
Na série norte-americana, a violência passou dos arredores da cidade ou dos ambientes rurais para o centro das metrópoles. Do mesmo modo, o sobrenatural foi se diluindo aos poucos, fazendo com que as torturas e as mortes deixassem de ser causadas pelos maus espíritos e passassem a ser protagonizadas pelos próprios humanos, lúcidos e cruéis, agindo de modo plenamente consciente, contra seus semelhantes. Nesse processo, também o gênero de terror foi modificado e atualizado.
Recentemente, foram confirmadas outras duas temporadas de American horror story. Especula-se que, em 2018, a história será ambientada no futuro e, em 2019, talvez os autores invistam em um crossover das temporadas 1 e 3. Essa prática é comum, na série, e com certeza vai agradar aos fãs. Só nos resta esperar.