O que o consumo de músicas pode ter a ver com o consumo de literatura

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Há um tipo de movimento que chamo de globalização individual. A concentração, bem no meu início de juventude, a época da autonomia exacerbada, era de coisa em coisa. Hoje é de muitas coisas em muitas coisas. Escutava o álbum inteiro do Djavan, do Michael Jackson ou do Axé Bahia – é verdade, sério. Mas hoje o conceito de álbum é datado e foi substituído por degustação de playlists. Observei, por exemplo, que vários artistas estão lançando músicas, e não discos. Tornam públicos singles, a famigerada música de trabalho, sem existir um álbum onde esteja hospedado. Tem momentos que sequer entram em uma obra mais completa e num conceito completo. É a música solta fazendo parte de um tempo e só. Rareia o tipo de pessoa que escuta um álbum inteiro.

Muito semelhante ao fordismo:

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Nada é difícil se for dividido em pequenas partes.
(Henry Ford)

As pequenas partes que se encaixam fazem parte de um todo com alguma significação. E as pequenas partes soltas que tentam existir por si só? As brevidades conseguem perdurar? Nessas novas formas de interações tecnológicas, onde o livro se encaixa?

Tenho a sensação de que as playlists se tornaram populares por conta dessa era de urgência de consumo. Não ter tempo é algo tratado com beleza. Estar exausto ao fim do dia parece ser sinônimo de que a vida tem sentido. Nessa falta de tempo vem a personalização do consumo. Não há oportunidade para arrependimentos, para testes.

Com esse cenário de falta de chance para experimentações, há a insistência em situações já consolidadas. O celebrado universo cinematográfico da Marvel era impensável há cerca de vinte anos. Uma sequência grande de longas-metragens conectados só aprofunda e explora a atmosfera já estabelecida de heróis.

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Outra coisa é a fragmentação da atenção. Nem histórias de amor estão durando mais que suas canções. Nem os filmes favoritos das pessoas têm atenção exclusiva de quem assiste. Nem em uma roda de conversa há atenção exclusiva. Há sempre um outro papo a acontecer no celular. Nem no próprio celular a atenção é mantida com uma só coisa. Clica pra lá, clica pra cá. Abre página, fecha aplicativo, vê foto, digita na conversa, volta ao ponto inicial. Como alguém escutaria um álbum completo de um só artista? Como alguém lê um livro com tanta pressa e com tantas coisas efêmeras a se fazer?

Há nisso tudo uma histeria por audiência, uma era de loucura de superfície. Todo mundo conhece tudo baseado no título do livro, na manchete ou em pequenas resenhas. Algumas pesquisas apontam que as pessoas param de ouvir músicas novas a partir dos trinta anos de idade. Concentram-se nas músicas consolidadas no subconsciente e no resgate de emoções, geralmente da juventude. Não é por acaso que a nostalgia pegue pelo braço quase todos que passam dos trinta e cinco anos.

Acredito que, diferente das músicas que nos alcançam com outros métodos, o leitor não para de buscar novos livros depois dos 30 anos de idade. O livro não se tornou um vinil da literatura. Mesmo com o crescente uso dos e-readers, o livro ainda tem seu espaço cativo nas prateleiras, nas leituras de sanitários e nos pés das camas. Mesmo que o consumo de arte tenha alterado, há que se considerar que, no final das contas, consomem arte.

Passei do álbum para as playlists. Ouço listas de músicas para dormir, para correr, para levantar da cama, para cozinhar, para agitar a alma antes de encontrar os amigos. Isso é a personalização do desejo. Por outro lado, quando me tocam, vou lá ouvir álbuns de artistas que não conhecia ou resgato algo além daquela lista. Suspeito, na congruência entre novo e velho mundo, que os álbuns apresentam valores ainda maiores. Para que eu escute um álbum completo tem que valer muito à pena. O consumo de música hoje tem exatamente isso a ver com o consumo de literatura: o caminho é compor e escrever algo que seja magnífico e não mais do mesmo. O mundo está muito mais exigente e nós artistas também.


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