2020: Uma odisseia na terra

Verônica Daniel Kobs

Há meio século, na década de 1970, assistíamos fascinados aos filmes de ficção científica, imaginando como seria o futuro, no próximo século, e se estaríamos vivos, para ver o novo mundo e o progresso tecnológico. Na mesma época, ouvíamos os sucessos de Raul Seixas, muitos deles reflexivos e de teor filosófico. Mal sabíamos nós que uma dessas músicas, lançada em 1977, um dia faria sentido, como se fosse uma profecia.

Era março de 2020, quando vimos O dia em que a Terra parou!

[…]

No dia em que a Terra parou (Ôôô)
No dia em que a Terra parou

E nas Igrejas nem um sino a badalar
Pois sabiam que os fiéis também não tavam lá
E os fiéis não saíram pra rezar
Pois sabiam que o padre também não tava lá
E o aluno não saiu para estudar
Pois sabia o professor também não tava lá

[…]. (SEIXAS, 2020)

A pandemia do novo coronavírus transformou o mundo e mudou nossa rotina. De um dia para o outro, fomos surpreendidos por um vírus mortal, altamente transmissível pelo ar e por qualquer tipo de contato. A morte viajou com escalas. Partiu do Oriente, passou pela Europa e chegou aos Trópicos. No Brasil, a exemplo do que já tinha ocorrido nos outros países, tudo fechou e os serviços essenciais passaram a abrir em horário reduzido e com uma série de restrições, a fim de manter o isolamento social, para evitar o contágio.

A partir daí, tudo parecia ficção: amigos e familiares não podiam mais se visitar; escolas, igrejas, cinemas, museus e shoppings fecharam. Famílias inteiras adoeceram e faltaram vagas nos hospitais e nos cemitérios. Inclusive rituais tão importantes, como velórios e enterros, foram totalmente reconfigurados. Os velórios foram proibidos e os enterros passaram a ser feitos com tempo e público reduzidos — deviam durar quinze minutos apenas e permitiam a presença só dos familiares mais íntimos. O choque foi brutal e o que mais ouvíamos e falávamos era que estávamos vivendo algo nunca antes imaginado. Nossa realidade parecia ter se convertido em roteiro de filme.

Chegamos a desejar que tudo fosse irreal e não passasse de um pesadelo… Geralmente, sonhos e pesadelos são pequenas sínteses, que pervertem as leis de espaço e tempo. Não podíamos estar dormindo por tanto tempo…

De fato. Já se passaram oito longos meses e o pesadelo não acaba. Pelo contrário… Mal vimos o número de mortes diminuir e todos estão falando na tal segunda onda.  Parece que estamos em um inferno coletivo, no qual nossos maiores medos se repetem, forever and ever, em um looping infinito.

Quando imaginaríamos ver universitários pedindo dinheiro ou vendendo doces no sinal, porque perderam o emprego e querem ajuda para conseguir o tão sonhado diploma? E quem pensaria que um dia Brasil, Índia e Estados Unidos apareceriam no mesmo hanking dos Top 3? Inimaginável? Não mais, pois tudo isso está acontecendo agora. Basta ligar a TV ou olhar em volta.

Diante deste novo cenário, minha perplexidade ainda não cessou, mas pelo menos comecei a entender melhor as coisas, quando assisti a uma palestra do FLIPOP — Festival de Literatura Pop — e ouvi a expressão usada pelo autor Raphael Montes, para tentar explicar o que estávamos vivendo. Para ele, estamos experimentando a “inverossimilhança da realidade” (EDITORA SEGUINTE, 2020). Achei perfeita a definição sugerida pelo escritor, pois a antítese representa muito bem a dualidade macabra que vivenciamos agora. Sim, porque estamos constantemente de luto pelos outros, mas sem deixarmos de estarmos felizes por estarmos vivos. Lamentamos pelos que já se foram e pedimos por nossas vidas… Nessa encruzilhada, não há como ter um sentimento pleno, nem só de pesar, nem só de alegria, pois a morte e o apego pela vida nos assombram há meses, dia após dia.

Voltando à fala de Raphael Montes, a percepção dele me levou também para o passado, quando havia uma propaganda, na TV Brasil, que divulgava o projeto DOC TV, criado em 2003. Se não me falha a memória, o slogan era mais ou menos assim: Quando a realidade parece ficção, é hora de fazer documentários. De fato, desde o início da pandemia, junto com alguns alunos e amigos também, tenho tentando registrar este tempo, em que somos parte de uma triste história. Ao contrário do que muitos pensam, um diário ou um jornal são tipos distintos de documentários e, nessas narrativas, a realidade é um elemento crucial: “[…] o documentário é chamado também de dramaturgia natural porque as pessoas que representam […] não são atores representando um papel dado, mas sim o papel delas mesmas, ou o papel que elas julgam ser o delas” (CASTRO, 2020).

Além disso, nossa realidade hoje se assemelha às distopias, que “são espelhos negros, versões corrompidas de futuros que batem na nossa porta” (VAIANO, 2020).

Para nós, porém, não se trata de futuro. O futuro, narrado e encenado tantas vezes, em livros e filmes, virou nosso presente! Presente inverossímil, repleto de acontecimentos inacreditáveis, como alguns, que estou tentando resgatar aqui, para marcá-los a ferro, em minha memória.

Começo relembrando alguns procedimentos adotados por alguns governantes, para garantir menores taxas de contágio do Covid-19. Nos primeiros meses da pandemia, a Itália decidiu usar  “drones para monitorar os deslocamentos dos cidadãos em todo o território italiano, depois que o governo determinou o isolamento social em meio à pandemia do novo coronavírus (Sars-CoV-2)” (AGÊNCIA ANSA, 2020). Depois, aqui no Brasil, assistíamos aos telejornais e acompanhávamos as notícias sobre o isolamento social e o monitoramento por sinal de celular, o que acirrou o debate sobre liberdade, privacidade, inclusive trazendo para a discussão as velhas teorias da conspiração.

Em meio a tantas mortes, considero também inverossímil algumas declarações que movimentaram as mídias e que provocaram questionamentos como este : “[…] o que leva um ser humano, diante de tanta tragédia, de tanta tristeza, de tanta dor, a dizer frases como ‘e daí?’ ou ‘morra quem morrer’” (GUROVITZ, 2020). Por outro lado, o amor e a saudade deram bons exemplos, de sensibilidade e criatividade, para tentar superar a distância e diminuir o risco de contágio. Refiro-me a dois projetos: o primeiro veio da Itália e ficou conhecido como O direito de dizer adeus: “Militantes compraram cerca de 20 tablets que foram distribuídos no Hospital San Carlo, em Milão, e que permitem a realização de videochamadas para um último adeus” (PEREIRA, 2020); e o segundo, batizado de Cortina do abraço, é coisa nossa, tendo sido criado para permitir que os familiares, depois de meses, pudessem voltar a ver os idosos que vivem em asilos (Fig. 1):

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Figura 1: Uma cortina do abraço permitiu “encontros emocionantes após longo tempo de isolamento” (AFP, 2020). Imagem disponível em: https://bit.ly/3o2dESP

Nos esportes, no ambiente escolar, na cultura e na filantropia, precisamos criar alternativas para evitar o perigo do novo coronavírus. Os atletas adeptos das corridas de rua aderiram à outra modalidade desse esporte, graças ao uso de um chip: “Para evitar aglomerações e garantir o distanciamento social, os corredores realizarão o percurso individualmente e com horário marcado” (MAYMONE; CHIANEZI, 2020). Longe da escola, professores e alunos promoveram a Carreata da saudade, projeto no qual alguns professores, munidos de máscaras e cartazes, organizaram-se em fila, nas calçadas, para receberem os alunos, que passavam com os pais, de carro, pela rua (GLOBO PLAY, 2020).

Na cultura, as lives foram tendência, presenteando o público com shows e peças de teatro, transmitidos ao vivo, da casa do artista ou de palcos sem plateia. A plateia era feita pela reunião de cada um de nós, que assistíamos à atração de casa, fingindo as sensações que já conhecemos. Inclusive, nos espetáculos teatrais, ouvíamos as três campainhas e até éramos convidados a apagar as luzes e desligar os celulares. E os aplausos eram dados por emoticons, durante o espetáculo ou ao final dele (Fig. 2).

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Figura 2: Comentários do público no chat do YouTube, durante a apresentação da atriz Irene Ravache, no projeto #EmCasaComSesc (Os nomes dos internautas foram omitidos, em cumprimento da nova LGPD — Lei Geral de Proteção de Dados). Imagem disponível em: https://bit.ly/39iXSyQ

Outra novidade foram os programas de auditório, que passaram a utilizar o formato on-line, para garantir, a um só tempo: o entretenimento do público; o faturamento do artista, da equipe técnica e da emissora; e a segurança de todos (Fig. 3):

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Figura 3: Primeiro dia do programa Caldeirão do Huck, da Rede Globo, com auditório on-line. Imagem disponível em: https://glo.bo/3o1J6QO

Ainda no contexto cultural, o mundo todo reativou o entretenimento no formato drive-in. Filmes e shows passaram a contar com uma plateia de carros. Aliás, em se tratando de automóveis, até doações e compras adotaram o sistema drive thru. Havia as compras comuns, nas quais as encomendas eram feitas por telefone, site ou aplicativo e, depois, retiradas nas lojas, em um guichê ou espaço específico, em conformidade com o protocolo de segurança sugerido pela OMS — Organização Mundial da Saúde. Porém, no quesito compras, uma ação inédita, batizada de drive thru indoor” (UOL, 2020), causou bastante polêmica: “Um shopping da cidade de Botucatu (SP) passou a permitir hoje um drive thru diferente: os consumidores podem circular de carro nos corredores das lojas para fazer compras desde que não desçam dos carros e usem máscaras” (UOL, 2020).

Retrocedemos ou avançamos no tempo? Não importa. O que importa, de fato, é que soubemos combinar a atmosfera vintage do cine drive-in com os avanços tecnológicos protagonizados pelo computador, pelo smartphone e pela Internet. Graças à tecnologia, em muitas instituições de ensino as aulas passaram a ser on-line. Também nas reuniões de trabalho, e até em consultas médicas, o que faz a diferença hoje é a telepresença. O sistema remoto instaurou, em nossas vidas, o home office e a telemedicina. Inclusive, há quem diga que essas saídas — as quais foram implantadas da noite para o dia, em meio à crise mundial — não são apenas modismos. Ao que parece, elas vieram para ficar.

Nessa realidade inverossímil e difícil de entender ou suportar, sem dúvida a arte nos traz alento, não exatamente pelo que é representado, mas pela oportunidade de ver, pensar e sentir sob outra perspectiva. Na tentativa de representar o irrepresentável, buscamos dar sentido ao mundo, à morte e à vida. Portanto, escolhi citar nesta crônica o trabalho do artista José Rufino, que, no dia 7 de março de 2020 (poucos dias depois de o Covid-19 ter chegado ao Brasil), fez a primeira pintura da série Fantasmagoria (Fig. 4). Segundo o próprio Rufino, trata-se de “uma forca que tenta enlaçar a pequena frase ‘Sem perdão’. Era como se fosse uma espécie de estandarte que ia me acompanhar no mergulho nesse abismo desconhecido, tanto do ponto de vista dessa situação existencial, biológica, como também da nossa situação política, ética, social, caótica do país” (CANAL ARTE 1, 2020).

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Figura 4: “A forca” e outras obras da série Fantasmagoria, de José Rufino.
Imagem disponível em: <https://bit.ly/3m8zHXb>

Desde o dia 15 de março até agora, Rufino já fez cerca de 40 obras (CANAL ARTE 1, 2020), sendo que algumas delas privilegiam o cruzamento da pintura com a materialidade de determinados objetos (Fig. 5):

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Figura 5: O reforço à materialidade na série Fantasmagoria, de José Rufino.
Imagem disponível em: <https://bit.ly/3me7mik>

Usando cores fortes e manchas intensas, Rufino privilegia o minimalismo, o que, sem dúvida, realça o desespero e o luto pela tragédia que se abateu sobre nós (Fig. 6). Ao falar sobre Fantasmagoria, José Rufino declara: “É uma série bastante visceral e isso não só tem me mantido vivo, como também me mantido ativo para o que vem depois” (CANAL ARTE 1, 2020).

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Figura 6: A relação entre a série Fantasmagoria, de José Rufino, e a pandemia causada pelo Covid-19. Imagem disponível em: <https://bit.ly/33g7juL>

Seja para caracterizar o processo criativo de Rufino ou para defender que a arte é nossa aliada no combate ao caos e ao medo diários, fiquemos com esta frase, de Ferreira Gullar: “A arte existe porque a vida não basta” (GULLAR, 2020). Isso nunca fez tanto sentido, não é mesmo?


REFERÊNCIAS
AFP. Cortina de abraços é instalada em asilo para familiares terem contato com idosos. 15 jun. 2020. Disponível em: <https://www.otempo.com.br/brasil/cortina-de-abracos-e-instalada-em-asilo-para-familiares-terem-contato-com-idosos-1.2349375>. Acesso em: 17 nov. 2020.
AGÊNCIA ANSA. Itália usará drones para monitorar deslocamento da população. 23 mar. 2020. Disponível em: <https://epocanegocios.globo.com/Tecnologia/noticia/2020/03/italia-usara-drones-para-monitorar-deslocamento-da-populacao.html>. Acesso em: 17 nov. 2020.
CANAL ARTE 1. “Fantasmagoria” por José Rufino. Arte1 em movimento. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=PEchIU7O8M0>. Acesso em: 19 nov. 2020.
CASTRO, G. Documentário, realidade e ficção. 1 jul. 2006. Disponível em: <https://www.guilhermecastrofilmes.org/single-post/2006/07/01/Document%C3%A1rio-realidade-e-fic%C3%A7%C3%A3o>. Acesso em: 17 nov. 2020.
EDITORA SEGUINTE. #Flipop2020: Terrores e distopias. 10 jul. 2020. Disponível em: < youtube.com/watch?v=xEXSr34CwNc>. Acesso em: 17 nov. 2020.
GLOBO PLAY. Carreata da saudade. Disponível em: <https://globoplay.globo.com/v/8574772/>. Acesso em: 21 nov. 2020.
GULLAR, F. Ferreira Gullar: A arte existe porque a vida não basta. Disponível em: <https://www.pensador.com/frase/NTg0MjMx/>. Acesso em: 19 nov. 2020.
GUROVITZ, H. Do ‘e daí?’ ao “morra quem morrer’. 3 jul. 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/blog/helio-gurovitz/post/2020/07/03/do-e-dai-ao-morra-quem-morrer.ghtml>. Acesso em: 17 nov. 2020.
MAYMONE, G.; CHIANEZI, M. Contra o coronavírus, corrida de rua terá prova individual e com hora marcada. 1 jun. 2020. Disponível em:<https://www.midiamax.com.br/esportes/2020/1084654>. Acesso em: 10 nov. 2020.
PEREIRA, M. E. Campanha ‘o direito de dizer adeus’ faz com que idosos se despeçam de entes queridos na Itália. 23 mar. 2020. Disponível em: <https://jornaldebrasilia.com.br/mundo/campanha-o-direito-de-dizer-adeus-faz-com-que-idosos-se-despecam-de-entes-queridos-na-italia/>. Acesso em: 17 nov. 2020.
SEIXAS, R. O dia em que a Terra parou. Disponível em: <https://www.vagalume.com.br/raul-seixas/o-dia-em-que-a-terra-parou.html>. Acesso em: 17 nov. 2020.
UOL. Drive thru: carros circulam dentro de shopping em Botucatu (SP); veja. 2 jul. 2020. Disponível em:<https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/07/02/drive-thru-carros-circulam-dentro-de-shopping-em-botucatu-sp-veja.htm>. Acesso em: 17 nov. 2020.
VAIANO, B. Como reconhecer uma distopia? 28 nov. 2016. Disponível em: <https://revistagalileu.globo.com/Cultura/noticia/2016/11/como-reconhecer-uma-distopia.html>. Acesso em: 17 nov. 2020.

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