Feito em casa: a pandemia de covid-19 e a reinvenção do cinema
Em 30 de junho de 2020, em meio à pandemia de covid-19, a Netflix lançou o filme Homemade (ou Feito em casa, na versão brasileira). A produção chamou a atenção pela proposta inusitada de adaptar o cinema às condições ditadas pelo vírus letal SARS-CoV-2:
Sob a produção de Pablo Larraín, Dios Larraín e Lorenzo Mieli, dezessete cineastas de todo o mundo se juntaram para fazer pequenos documentários sobre a vida no isolamento. […].
Todas as temáticas são amarradas pelo contexto da pandemia e mostram como é possível, ou não, se reinventar dentro desses momentos. Homemade é sobre experimentação de ângulos, equipamentos e narrativas, mas também sobre inventar dentro de um momento crítico que aprisiona a inventividade. (LOURENÇO, 2021)
Desde o início da pandemia, seis meses antes do lançamento do filme (Fig. 1), observávamos o esforço da arte para levar diversão e entretenimento ao mundo inteiro, na tentativa de atenuar o caos, em um primeiro momento. Posteriormente, as lives de teatro, stand-up, música e literatura estabeleceram uma nova meta: tentar definir alternativas para a sobrevivência dos artistas, que foram obrigados a parar de trabalhar, por falta de público, já que qualquer tipo de aglomeração foi proibido, a fim de evitar a transmissão do vírus.
O cartaz realça três novidades do filme — o formato de coletânea, o tema do isolamento e a interculturalidade —, que aparecem resumidas nesta frase: “Short films made in isolation from around the world”. Essas características reforçam a análise de Julia Lourenço, citada acima, e fazem ressoar o valor da experiência estética que o filme representa. Com tantos diferenciais, o projeto simboliza a adaptação e a resistência do cinema — e da arte em geral — frente às adversidades impostas pela pandemia. O resultado foi uma coletânea que apresenta diversidade e unidade ao mesmo tempo. Variam as técnicas narrativas, os cenários e o teor das histórias, mas todos os episódios focalizam um aspecto relevante do contexto pandêmico e de como ele mudou nossas vidas tão rapidamente.
Sendo assim, para dar amostras da versatilidade e da beleza poética do filme, este texto pretende fazer uma coletânea menor, com quatro exemplos bem distintos, mas complementares. O primeiro deles é Last call (Última chamada), um curta de onze minutos dirigido pelo chileno Pablo Larraín (Fig. 2). Marcada pela comicidade, a história se passa em um asilo, quando um dos residentes (interpretado pelo ator Jaime Vadell) pede ajuda à enfermeira. O plano dele é fazer encontros virtuais com suas ex-amantes, com o objetivo de resolver mal-entendidos e dores do passado, começando por Pâmela (personagem da atriz Mercedes Morán). Fica claro que a ideia é consequência da pandemia, que nos obrigou e vivenciar a morte muito de perto.
O diálogo do casal, a princípio cercado de nostalgia, inicia-se desta forma:
PÂMELA: — Que surpresa!
O HOMEM: — Pois é. Liguei para dizer que nunca te esqueci. Que sempre te amei. Ainda te amo. Te amo muito. Era o que eu queria dizer.
PÂMELA: — Está doente?
O HOMEM: — Não, acho que não. Mas é que, nesta casa de repouso, sete pessoas e uma assistente morreram. (FEITO EM CASA, 2020)
O texto é bastante sarcástico e divertido. Além disso, a presença da enfermeira, ao fundo das cenas, não deve ser desvalorizada. A moça ouve toda a conversa e demonstra opinião a cada movimento e a cada expressão facial. Outro detalhe diz respeito à proposta da coletânea, razão pela qual, ao final da história, o espectador lê, na tela, a seguinte informação: “Este curta foi filmado de forma remota, com computadores, durante a quarentena estabelecida pelas autoridades de Santiago, Chile” (FEITO EM CASA, 2020).
A segunda história é dirigida e estrelada por Johnny Ma (Figs. 3 e 4). Embora o curta (de 8 minutos) remeta à cidade de San Sebastián Del Oeste, no México, a origem sino-canadense do ator, roteirista e diretor predomina: sob o título Mama’s dumpling recipe (Receita de dumpling da mamãe), Johnny Ma prepara para a família uma receita de sua mãe e de sua avó. O isolamento parece ter servido de gatilho para as memórias de infância e para a tentativa de resgatar o relacionamento com a mãe, que não aceita a família mexicana do filho. No início do minifilme, o protagonista contextualiza a história que será apresentada:
Sou um filho ausente. Hoje é o 50º dia da minha quarentena no México. E também é Dia das Mães. [...]. Ao longo dos anos, foi fácil não ligar para você neste dia. [...]. Lentamente, a distância entre nós aumentou. Todos os anos, no Ano-Novo chinês, íamos à casa da vó pra comer dumpling. (FEITO EM CASA, 2020)
O personagem de Johnny Ma dedica o filme à mãe, mesmo sabendo que talvez ela nunca tenha a chance de ver aquela homenagem, afinal, segundo o filho, a mãe dele não tem o hábito de “assitir à Netflix” (FEITO EM CASA, 2020). Por fim, também respeitando a filosofia do projeto cinematográfico e as restrições impostas pela covid-19, o diretor divulga esta nota, no encerramento do curta: “Esta história foi feita em San Sebastián Del oeste, México, por meus amigos e família com quem fiquei isolado. Filmado totalmente com um celular” (FEITO EM CASA, 2020).
O terceiro minifilme da coletânea Feito em casa é dirigido por Gurinder Chadha, uma britânica de origem indiana. Filmado em Londres, o curta de nove minutos, intitulado Unexpected gift (Presente inesperado), come com a lembrança da morte recente da mãe da diretora e protagonista, ocorrida em 2019. A história mistura o espaço público do parque da cidade à privacidade da casa e da família de Chadha, em dois contextos diferentes: a rotina com o marido e os filhos, em sua casa, na capital inglesa; e as tradições de sua cultura ancestral, com o resto da família, na Índia, por meio de fotos antigas e conversas on-line. O curta começa no 63º. dia de confinamento. Porém, há trechos em que os filhos narram os acontecimentos trágicos pelos quais a família já tinha passado (Fig. 5):
No 28º. dia, recebemos uma notícia ruim. O tio da minha mãe no Quênia morreu de infarto. […]. Vimos o funeral dele pelo Facebook Live. Depois, outra tragédia. No 35º. dia, Satpal pouaji, uma das tias preferidas da mãe, pegou a covid-19 e ninguém pôde vê-la no hospital. As enfermeiras seguraram sua mão e nos chamaram por vídeo durante seu último suspiro. (FEITO EM CASA, 2020)
Também são os filhos de Gurinder Chadha que dão espaço para as cenas que mostram a rotina da família, em meio à pandemia: “A mãe fica inventando coisas produtivas, assim largamos nossos iPads e PS4. E escrevemos uma canção” (FEITO EM CASA, 2020). Além da composição musical, o espectador acompanha outras situações, bem mais triviais (Fig. 6), como: o banho da cachorra; a família dançando; pai e filho pintando uma bicicleta; o corte de cabelo do marido, feito pela própria Gurinder; e até mesmo rituais indianos, que a protagonista faz questão de ensinar para os filhos.
No final do filme, a atriz e diretora assume a palavra, justificando o título escolhido por ela: “[…] apesar das perdas e sofrimento deste período, um presente inesperado foi o tempo. […] o tempo para me conectar com meus filhos sobre o nosso passado e futuro” (FEITO EM CASA, 2020, grifo nosso). Posteriormente, Gurinder completa: “Este filme caseiro foi feito em minha casa, jardim e parque local, com a minha câmera e o apoio da minha família” (FEITO EM CASA, 2020).
Por fim, a quarta história que será destacada neste texto, intitulada Ride it out (Vá de bike), é dirigida e estrelada por Ana Lily Amirpour. Narrado por Cate Blanchet, esse curta resume-se a um passeio de bicicleta pelas ruas vazias de Los Angeles. As imagens fazem parecer que se trata de uma cidade pacata, e não da capital mundial do entretenimento. No entanto, essa estranheza é explicada logo no início: “O dia é 15 de maio. O ano é 2020. Um vírus estranho se espalhou pelo mundo” (FEITO EM CASA, 2020). Desde esse instante, o espectador acompanha a diretora, atriz e roteirista inglesa, de origem iraniana, durante dez minutos, e compartilha com ela o assombro, diante da paisagem triste e deserta, sem pessoas, nem carros (Fig. 7).
Não há movimento, os estabelecimentos comerciais estão todos fechados e há algumas mensagens relacionadas ao novo vírus, como este grafite (Fig. 8):
Ao longo da história, o passeio de bicicleta não é apenas apresentado como uma alternativa ao confinamento. Mais do que isso, o curta propõe uma reflexão sobre o novo modo de vida que fomos obrigados a adotar, durante a pandemia. Coerente com essa ideia, há um reforço mútuo entre a narração feita por Cate Blanchet e as imagens do minifilme, afinal os pontos turísticos de Los Angeles não surpreendem apenas pela falta de pessoas, mas também pelo modo como são focalizados pela câmera. As imagens são aéreas, o que resulta em uma beleza incômoda, já que o plano panorâmico tende a realçar o esvaziamento dos ambientes (Fig. 9):
Diante da breve apresentação feita neste texto, é possível enxergar, em Feito em casa, a característica que é anunciada já no título. A produção é, de fato, caseira, confirmando as previsões de Coppola, Warhol e Orwell, como constatou o articulista Fernando Ceylão, em um texto publicado na revista Helena:
No final do documentário Hearts of darkness, espécie de making of de Apocalypse now, realizado por Eleanor, mulher de Francis Ford Coppola, o diretor fala para a […] câmera: “O cinema só será uma espécie de arte quando uma dona de casa puder fazer o seu próprio filme”. Chegamos a essa era. E as donas de casa são os milhares de jovens que satirizam suas vidas diante de câmeras de baixo custo e alta resolução.
A tecnologia permitiu que se concretizassem as profecias não só de Coppola, mas também de Andy Warhol e, claro, George Orwell. Hoje, somos todos documentaristas de nós mesmos; fotógrafos, articulistas, personagens de reality shows e humoristas. (CEYLÃO, 2017, p. 90)
No caso específico do filme Feito em casa, o registro e a atuação individuais ou em família atenderam a uma necessidade, afinal o isolamento foi imposto pela pandemia. Também citando as palavras de Andy Warhol, Márcio do Prado, ao comentar a democratização gerada pela proximidade entre arte e tecnologia, afirma: “A arte está em toda parte; logo, já não existe, todo mundo é genial” (PRADO, 2016, p. 29). De fato, a autonomia possibilitada pelos recursos tecnológicos que temos hoje foi essencial para alavancar o projeto cinematográfico lançado pela Netflix, sobretudo se levarmos em conta as restrições logísticas decorrentes do isolamento e o perfil que nossa sociedade vem estabelecendo há alguns anos.
Nesse contexto, não apenas a tecnologia ganhou importância. A cultura das redes sociais — que envolve exposição, autonomia e certa dose de individualismo/narcisismo — também desempenhou papel fundamental no formato proposto pelo filme em questão. A maioria dos curtas registra a rotina do protagonista — em casa, com a família. Sob essa perspectiva, Feito em casa insere-se perfeitamente na moda dos posts, curtidas e comentários, que há anos conhecemos muito bem:
O sucesso editorial das biografias e das autobiografias [...] dá conta de um processo que excede as margens de um mero fenômeno de mercado. Existe, hoje, uma voracidade com relação a tudo que remeta a “vidas reais”. Como parte significativa desse movimento, cabe destacar a proliferação de documentários em primeira pessoa, o sucesso internacional dos reality-shows e o surpreendente auge dos blogs, uma novíssima espécie de “diário íntimo” publicado na Internet pelos usuários do mundo inteiro. (SIBILIA, 2004, n. p., grifo no original)
Além do interesse por nossas próprias vidas e pelas vidas dos outros, Paula Sibilia ressalta a importância histórica das postagens que fazemos nas redes sociais. Dia após dia, eternizamos momentos e pessoas: “[…] os autores dos diários íntimos publicados no ciberespaço realizam operações de ‘congelamento do tempo’, como se fotografassem certos momentos de suas vidas e os pregassem com alfinetes num imenso quadro-negro virtual de alcance global” (SIBILIA, 2004, n. p., grifo no original). Em Feito em casa isso também ocorre: cada curta pode ser entendido como um tipo de registro e as visões multifacetadas que as histórias representam são o maior legado do filme — uma espécie de documentário, que preserva uma parte de nossas vidas (marcada pela tragédia, mas também pela esperança) para as gerações futuras.
Outro traço marcante de Feito em casa é o aspecto colaborativo. Márcio Roberto do Prado (2016), ao analisar a poesia viral, associa esse tema ao conceito de adhocracia, desenvolvido por Henry Jenkins. É certo que Prado estuda especificamente a influência da Internet sobre a literatura viral. Ainda assim, as afirmações do autor também servem para caracterizar o filme Feito em casa, no que diz respeito à autoria coletiva. Conforme Prado, a Internet e outros recursos tecnológicos da atualidade possibilitam uma “dinâmica colaborativa e participativa”, resultando em discursos arborescentes (PRADO, 2016, p. 28). Sem dúvida, esse sistema está relacionado ao conceito de “adhocracia”, que se caracteriza “pela ausência de hierarquia […]. Uma adhocracia, portanto, é uma cultura do conhecimento que transforma informação em ação” (JENKINS, 2009, p. 349). Aplicando essa ideia à produção da Netflix, verificamos que Feito em casa rejeita qualquer tipo de hierarquia, tendo em vista o formato de coletânea, com a participação de dezoito diretores do mundo todo.
Outra característica da adhocracia que pode ser percebida, na produção em análise, é o fato de o filme ter sido feito “às margens da cultura comercial, por meio de indústrias alternativas ou de nichos” (JENKINS, 2009, p. 357). Na verdade, essa condição foi ditada pelo próprio contexto pandêmico, que tornou o isolamento social algo obrigatório. Por essa razão, no trailer do filme, as seguintes palavras aparecem em destaque, na tela: “No crews. No budget” (NETFLIX, 2021). Traduzindo livremente, isso significa: “Sem equipes. Sem orçamento”. Portanto, podemos concluir que o que muitos espectadores enxergariam como problema ou dificuldade passou a ser a maior qualidade do filme. O primeiro passo para a reconfiguração do cinema certamente foi dado. Agora precisamos aguardar outro lançamento, como sinal de um novo tempo e de um cinema totalmente diferente: uma coletânea de curtas dirigidos também por espectadores ou por diretores não profissionais. Quem se habilita?
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