Sincretismo e diversidade em O pagador de promessas
Em outubro deste ano, Dias Gomes (1922-1999) completaria 99 anos… O pagador de promessas, uma das obras de destaque do autor, celebra a diversidade cultural, a partir do sincretismo religioso. Sem dúvida, essa característica do texto dramatúrgico reflete a popularização dos traços de origem africana, que finalmente foram integrados à identidade cultural brasileira, depois de décadas de ausência e recusa. Por esse motivo e também pelo posicionamento político que Dias Gomes sempre privilegiou, neste mês discutiremos a peça O pagador de promessas em dois textos, publicados nesta coluna quinzenal.
Em 1962, a peça foi adaptada para o cinema. O filme, dirigido por Anselmo Duarte, conquistou inúmeros prêmios e contou com Glória Menezes (Rosa) e Leonardo Vilar (Zé do Burro) nos papéis principais. Exemplo de adaptação extremamente bem sucedida, o filme recupera a peça quase integralmente e reforça aspectos que, no texto teatral, são apresentados mais ligeiramente. As mudanças feitas no filme levam em conta critérios distintos, dando espaço à condensação, por exemplo, em determinados momentos, e, em outros, privilegiando a ampliação.
Na peça, logo no início, Rosa e Zé do Burro chegam à Igreja de Santa Bárbara, destino de Zé, que tinha feito a Iansan a promessa de levar uma cruz à igreja que levava o nome da santa (Fig. 1). Porém, o padre entende que, como a promessa tinha sido feita em um terreiro de candomblé, era para lá que Zé deveria levar a cruz. Além disso, o fato de Zé fazer uma promessa que o obrigou a passar pelo mesmo sofrimento de Cristo é considerado uma heresia.
O filme, diferentemente do texto, tem início no terreiro, mostrando Zé desde o momento em que fez sua promessa. Depois disso, enquanto aparece o letreiro, é mostrada a peregrinação do personagem, que passa por lugares distintos, à noite e durante o dia, o que dá maior dimensão a sua fé e também à tragédia desencadeada pela recusa do padre em aceitar que Zé entre na igreja com a cruz. Esse enaltecimento da fé e da tragédia, consequentemente, seria a primeira função do começo do filme, que ainda cumpre outros três papéis importantes: um deles é a contextualização, para que o espectador compreenda melhor o que está acontecendo e por quê; o outro é retratar uma parte da cultura brasileira, fortemente influenciada pela africana, no momento em que são mostrados rituais comuns em terreiros; e o terceiro, como menciona Sábato Magaldi (Cf. GOMES, 1996), é influenciar o espectador através do apelo afetivo da cena, já que a ação é apresentada pela perspectiva de Zé.
Também com o objetivo de retratar aspectos culturais do Brasil e baianos, especificamente, o diretor do filme enfatiza algumas situações presentes na peça, bem como insere algumas cenas que levam adiante o que o texto apenas sugere ou que potencializam o aspecto religioso da obra. O primeiro exemplo disso são as longas cenas que mostram a procissão comemorativa do dia de Santa Bárbara, festa que demonstra muito bem a presença do sincretismo. Pode-se aventar a hipótese de que a escolha da Bahia como cenário para representar o Brasil aconteceu justamente pelo fato de o estado ser o que mais carrega a pluralidade como traço constitutivo:
Na Bahia, o sincretismo religioso sempre foi um assunto delicado para as autoridades eclesiásticas. É uma herança antiga, ainda do tempo da escravidão. Proibidos pelos senhores de engenho de praticar o candomblé, os escravos desenvolveram uma forma de religiosidade na qual os símbolos e rituais afros se misturaram aos católicos, e vice-versa. Como resultado, hoje é comum encontrar […] santos com nomes de orixás, da mesma forma que o atabaque e o berimbau se incorporaram às festividades católicas. (CAMPOS, 2008)
Exatamente por isso a religiosidade foi ampliada, no filme, dando mais espaço à polêmica causada pelo sincretismo, a qual é bem evidenciada não só pelos embates frequentes entre o padre e Zé do Burro, mas também por uma cena com os membros do alto escalão da Igreja, reunidos para discutirem a repercussão da promessa feita por Zé e sua insistência em entrar na igreja. No texto de Dias Gomes, isso não aparece. Ocorre apenas a visita do Monsenhor ao padre, sem que se revele ao leitor o tema da conversa que eles tiveram.
Naturalmente dividido, o texto de Dias Gomes focaliza a diversidade de nossa cultura, sobretudo em se tratando do cenário baiano, em que catolicismo e candomblé se confundem (Fig. 2), por meio dos personagens que representam essas duas seitas: Padre, Sacristão, Beata e Bispo, de um lado; Minha Tia do outro. Essa divisão é mais um exemplo do sincretismo promovido pelo autor e dos conflitos que advêm dele. Os capoeiristas, como constituem uma casta mais popular, aliam-se a Minha Tia.
No mesmo grupo, ainda está Dedé, que, apesar de ser comerciante, como Galego, faz parte do mercado informal. A Igreja, o Repórter e Galego, desse modo, integram grupo distinto, regido pelas normas ditas “oficiais” e, por isso, não totalmente em conformidade com o povo. Da mesma maneira, pode-se dividir Zé, Rosa, Bonitão e Marli entre esses mesmos dois grupos. O cafetão e a prostituta integram o grupo dominante, até por seus perfis desenvoltos e já corrompidos. Contrários a eles são Zé e Rosa, que ainda trazem a ingenuidade que os aproxima dos capoeiristas, das baianas e de Dedé, até porque o único motivo que move tais personagens é a solidariedade, agora legítima, sem interesse (Fig. 3).
Décio de Almeida Prado faz referência a essa divisão, identificando os personagens como positivos ou negativos:
Maus, numa gradação que vai da hipocrisia à violência, da subserviência ao exercício arbitrário do poder, são os que desejam manter as coisas no pé em que estão, tirando vantagem das desigualdades econômicas: policiais safados, jornalistas cínicos, políticos exímios em explorar a credulidade alheia. Bons são os que se rebelam, por motivos conscientes ou inconscientes, contra a estrutura de uma sociedade injusta. (PRADO, 1996, p. 88)
Aproveitando a divisão, antagônica, o crítico corrige a posição dos que habitualmente veem, em O pagador de promessas, a luta entre a tolerância e a intolerância, mencionando que se trata mais do confronto entre dois tipos de intolerância, “a legítima, por trabalhar a favor da justiça social, e a ilegítima, que deseja apenas perpetuar os privilégios atuais” (PRADO, 1996, p. 89).
Além dessas diferenças, o filme optou pela ampliação de alguns personagens. Rosa é o exemplo mais evidente. O destaque dado a ela provocou reflexos de fundamental importância, como: um maior dinamismo da história, já que há maior equilíbrio entre Zé e Rosa; e uma nova função para Rosa, que passa a ser uma espécie de mediadora, já que funciona como uma “ponte” entre Zé e aquela sociedade nova. Isso ocorre porque ela, apesar de parecer ingênua, supera o marido na objetividade, o que lhe permite analisar as coisas sem a fé desmedida de Zé, e interferir junto a ele, na tentativa de protegê-lo e demovê-lo de seu intento.
Também relacionada ao perfil de Rosa outra mudança importante resume-se ao modo como o filme abordou a traição de Rosa, que se entregou a Bonitão, cafetão que praticamente recepcionou o casal, assim que este chegou à cidade. Enquanto Dias Gomes apenas sugeriu o adultério, Anselmo Duarte, no filme, deu extrema importância ao ato. Quando Bonitão se oferece para levar Rosa até um hotel, para que ela descanse, depois da longa caminhada, há cenas que mostram as investidas do estranho e a atração que Rosa sente por ele, o que a faz ceder, tanto que o espectador vê Rosa pagando pelo quarto de hotel e Bonitão trancando a porta, depois de entrar com ela no quarto.
O perfil da personagem muda. De vítima ingênua, ela passa a gozar de maior autonomia, no filme, o que justifica, mais tarde, sua posição mais firme em relação a Bonitão. Rosa amava Zé e a traição desencadeou nela um profundo sentimento de culpa. Em uma cena longuíssima do filme, Rosa sai do hotel e anda cada vez mais rápido pelas ruas, parecendo perdida, angustiada. O mais interessante é que a música, ao fundo, cresce, acompanhando a agitação de Rosa. Sendo assim, pode-se afirmar que a nova abordagem dada ao adultério colabora para delinear as características psicológicas do personagem, de modo a consolidar a ampliação de seu papel.
Acentuando ainda mais a transformação sofrida por Rosa, ela mostra revolta, no filme, quando descobre que o cafetão havia denunciado Zé para um amigo investigador. Rosa, nesse momento, não só se mostra contrariada, mas exige que Bonitão volte atrás e afaste a polícia do caso. Diante da recusa dele, Rosa o esbofeteia. Esse ato, consequentemente, abre espaço a um final também diferente para o personagem. Na obra literária, Rosa fica sozinha, enquanto vê os capoeiristas carregarem Zé na cruz para dentro da igreja (Fig. 4), quando surge Bonitão tentando ampará-la e levá-la dali, mas ela o rejeita e segue o cortejo, junto com Galego e Dedé.
No filme, Rosa aparece desolada, assiste a tudo e é a última a entrar na igreja, sozinha. Ela encerra o filme mostrando mais força, sem nenhuma interferência de Bonitão, até porque ela já tinha rompido qualquer laço com ele, na hora em que o esbofeteou.
O padre é outro personagem que ganha maior relevância no filme. Antes de ser um representante da Igreja, ele é apresentado como um ser humano comum. Algumas cenas protagonizadas por esse personagem (e que são exclusividade do filme) são curtas, mas ampliam o conflito vivenciado por ele, garantindo-lhe um perfil psicológico mais bem delineado. Uma delas mostra o padre rezando e outra, de maior impacto, porque evidencia seu descontrole, acontece no momento em que ele toca o sino violentamente, fazendo as badaladas dividirem espaço com o som do berimbau, instrumento que se destacava, durante a formação de uma roda de capoeira. O aspecto bondoso e conciliador, que deveria predominar no padre, dá lugar à intolerância, fazendo com que público e crítica passassem a questionar até que ponto o personagem podia ainda ser considerado um representante de Deus.
Mas isso é tema para outra conversa…
Não perca a continuação deste texto, daqui a duas semanas, aqui, no Recorte Lírico.
REFERÊNCIAS:
CAMPOS, C. Missa sem tambor. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/010798/p_102.html>. Acesso em: 3 mai. 2008.
GOMES, D. O pagador de promessas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
PRADO, D. de A. O teatro brasileiro moderno. São Paulo: Perspectiva, 1996.
Texto originalmente publicado na tese intitulada Brasil: nas melhores lojas do ramo, em livro e DVD, defendida pela autora deste artigo, em setembro de 2009, na Universidade Federal do Paraná.
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