Brasilidade e mestiçagem em “O pagador de promessas” (parte 2)
Nossa discussão de hoje começa com a cena do descontrole do padre, em O pagador de promessas. Essa passagem corresponde ao início do terceiro ato, na peça, quando Dias Gomes utiliza uma rubrica bastante detalhada, para mostrar, mais uma vez, os costumes relacionados à cultura africana, com destaque às rodas de capoeira, ao som do berimbau e ao comércio ambulante. Isso foi resgatado e cuidadosamente expandido no filme, já que as imagens alternam o desespero do padre, no alto da torre, ao lado do sino, com a roda de copeira, lá embaixo.
À medida que os capoeiristas envolvem-se no jogo, a música cresce, alcançando um ritmo frenético. E é justamente nesse clímax que se alternam os sons do sino e do berimbau. Focalizada de cima e ressaltada pelo jogo entre luz e sombra (Fig. 1), a roda que se forma durante o jogo da capoeira, nomeado, em uma das rubricas da peça, como “luta-dança” (GOMES, 1997), parece servir como uma metáfora do embate entre Zé e o padre, o povo e a Igreja, o bem e o mal, o branco e o negro, pois o espectador vê a roda dividida em duas partes: a de um jogador está extremamente clara e iluminada e a outra está escurecida. Assim, forma-se um círculo dividido exatamente ao meio e apresentando duas partes completamente opostas.
LEIA A PRIMEIRA PARTE DO TEXTO:
Essa divisão evidencia crítica, por questionar o poder da Igreja Católica e perfazer a inter-relação de religião e política, e serve de metáfora para o sincretismo, traço bastante característico da brasilidade:
“Realmente, boa parte dos baianos tem fé nas entidades das duas religiões” […]. Uma prova de que a mistura entre ritos afros e catolicismo talvez já não possa ser desfeita está no censo do IBGE. Embora Salvador seja uma cidade que se veste de branco às sextas-feiras, em reverência a Oxalá […], no último censo apenas 0,1% dos baianos se declararam adeptos do candomblé […]. A porcentagem é menor do que na maioria dos outros Estados e só se iguala à do Paraná e à de Sergipe. No Rio de Janeiro, quase 2% da população diz seguir o candomblé. Na Bahia, ao contrário, a imensa maioria da população se declara católica. Até Mãe Menininha do Gantois, a mais famosa mãe-de-santo baiana, dizia ser católica. (CAMPOS, 2008)
A passagem acima comprova que a promessa de Zé foi uma atitude absolutamente normal, no que diz respeito ao fato de ele ter relacionado Iansan a Santa Bárbara. Porém, a peça e o filme atingem o ápice da ação justamente no conflito desencadeado pela tentativa do padre (e do poder oficial) de separar as coisas. Por essa razão, são extremamente representativas as duas partes do círculo, que se opõem, no filme, mas, ao mesmo tempo, se completam, porque concretizam uma característica arraigada na cultura baiana e também na brasileira. De um lado, o poder popular e, do outro, o poder oficial, duplicidade que, longe de ser paradoxal, permite focalizar a diversidade que existe por trás da unidade, como já alardeavam, entre outros autores, Sílvio Romero e Gilberto Freyre, em épocas distintas.
O hibridismo é termo-chave para explicar o sincretismo e a sociedade brasileira, que, com O pagador de promessas, dá continuidade à revisão do projeto americano, assumindo o mito das três raças e a presença do negro em sua formação. Os personagens de Dias Gomes representam tipos diversos, mas que integram a mesma sociedade e, para isso, a escolha da Bahia como cenário é de extrema relevância.
Antonio Candido, em Literatura e sociedade, refere-se à mestiçagem, afirmando que os próprios brasileiros consideravam-na um traço negativo: “No Brasil, havia certo constrangimento em relação a tudo que era popular — negros, mestiços, índios, cultos de raízes africanas, etc. Por uma espécie de ‘vergonha’, apelava-se a uma idealização” (CANDIDO, 2000, p. 82, grifo no original). Esse sentimento, em O pagador de promessas, não subsiste. A vergonha de antes passou a ser motivo de orgulho. Os elementos culturais que o reducionismo, com o tempo, apagou de nossa cultura, são redefinidos, junto com o conceito de nacionalismo, no texto de Dias Gomes, e, posteriormente, no filme de Anselmo Duarte.
Junto com a mestiçagem, assume-se também a malandragem como traço constitutivo do brasileiro, associação que Lilia Schwarcz constata em Macunaíma, personagem de Mário de Andrade, e também em Zé Carioca, criação de Walt Disney para representar o povo brasileiro. Na obra de Dias Gomes, a malandragem é representada pelos personagens Marli e Bonitão e a mestiçagem é exaltada pela ênfase à capoeira, ao candomblé e ao sincretismo religioso. Tais características culturais, juntamente com o samba, a caipirinha e até a feijoada, foram tiradas da sombra e observadas a partir de outro ângulo, depois do advento do Modernismo, tanto que, aos poucos, foram transformadas em diferenciais representativos da brasilidade e viraram produtos tipo exportação, a ponto de se estereotiparem, na década de 1950. O fato, porém, é que, mesmo sob o peso dos estereótipos, na época, a redescoberta desses elementos constituiu verdadeira conquista, abrindo espaço para Casa grande & senzala, de Gilberto Freyre, e Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, obras que deram continuidade ao que Mário de Andrade, com Macunaíma, havia começado, nos primeiros anos do Modernismo.
O candomblé, na peça, divide espaço com os rituais católicos, seguindo o que Zilá Bernd define como “visão dessacralizante”:
[…] o Modernismo concebeu a identidade nacional no sentido de sua dessacralização, o que corresponde […] a um pensamento politizado, equivalendo a uma abertura contínua para o DIVERSO, território no qual uma cultura pode estabelecer relações com as outras. (BERND, 1992, p. 18, grifo no original)
Esse hibridismo aparece nos momentos em que Dias Gomes expõe os costumes que herdamos da cultura africana. Destaque especial merece a capoeira, encarada como “herança da mestiçagem no conflito das raças” (MORAES FILHO, 1979, p. 257). A partir do Modernismo, mestiçagem passa a ser sinônimo de nacional, como acentua Lília Schwarcz: “[…] o ‘mestiço vira nacional’, paralelamente a um processo crescente de desafricanização de vários elementos culturais, simbolicamente clareados em meio a esse contexto” (SCHWARCZ, 2007, p. 14, grifo no original).
Os tipos que compõem o mosaico cultural que Dias Gomes apresenta em seu texto começam a aparecer já no primeiro ato, com a figura da beata, mas, no segundo ato, essa miscelânea se intensifica. Abrem o primeiro quadro três personagens importantes nesse aspecto: Galego, Minha Tia e Dedé Cospe Rima. Galego representa a presença estrangeira dos imigrantes no Brasil. Inclusive, as falas dele são escritas todas em espanhol, alternando-se com as falas de Minha Tia, que privilegiam o dialeto baiano e a crença no candomblé.
No segundo ato, a beata contracena com os demais personagens citados acima, completando o quadro da multiplicidade cultural e religiosa. No mesmo ato, em longo trecho, Dedé e Galego potencializam o sincretismo, com longas falas em espanhol e poemas declamados, de versos rimados, promovendo a intertextualidade. Pela mistura de etnias, chega-se à mistura de crenças e linguagens, instalando o plurilinguismo, no texto dramatúrgico, e tornando cada personagem dono de um modo de expressão que lhe é peculiar, como demonstra o trecho abaixo:
DEDÉ (Declama):
Bom dia, galego amigo!
dia assim eu nunca vi;
para saudar Iansan,
Não repare eu lhe pedi:
me empreste por obséquio
dois dedos de parati.
GALEGO É, com esta história de hacer versos, usted sempre me leva na conversa. (Entra na venda e dá a volta por trás do balcão.) Es buena mesmo essa del cego Jeremias? (Serve o parati.) (GOMES, 1997, p. 83)
Outro momento em que o autor privilegia a miscigenação é no início do terceiro ato, quando, diante da igreja, forma-se a roda de capoeira. Dedé, Minha Tia e Galego agora têm seu time reforçado pelos capoeiristas, sobretudo por Mestre Coca e Manuelzinho Sua-Mãe. A musicalidade é enfatizada, de modo a ampliar o significado ritualístico que o som dos instrumentos, o canto e a coreografia desempenham na capoeira. Dessa forma, abre-se ainda mais a roda, dando espaço à dança e à participação de pessoas comuns, celebrando a diversidade e a integração (Fig. 2):
Além disso, o som dos instrumentos, com destaque ao berimbau (Fig. 3), acompanha as falas cantadas dos capoeiristas, que se alternam com as do coro:
CORO
Cai, cai, Catarina,
sarta de má, vem vê Dalina.
MESTRE DO CORO
Minino, quem foi teu mestre?
quem te ensino a jogá?
— Sô discip’o que aprendo
meu mestre foi Mangangá […]. (GOMES, 1997, p. 153)
Sem dúvida, essa relação acentua o aspecto popular, não só pelo jogo da capoeira, mas pela feição africana, perceptível também na linguagem, com registro informal, privilegiando a estilização da oralidade. Isso prova que a variedade própria da mestiçagem, além de se refletir na esfera religiosa, como bem demonstra o sincretismo, também é sinalizada na linguagem, formal e ideologicamente. As falas, as crenças e os costumes de um povo são trazidos à tona, no texto dramatúrgico e no filme, e remetem à diversidade que se fez unidade, no início da formação da sociedade brasileira.
Não perca a continuação deste texto, daqui a duas semanas, aqui, no Recorte Lírico.
REFERÊNCIAS:
BERND, Z. Literatura e identidade nacional. Porto Alegre: UFRGS, 1992.
CAMPOS, C. Missa sem tambor. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/010798/p_102.html>. Acesso em: 3 mai. 2008.
CANDIDO, A. Literatura e sociedade. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000.
GOMES, D. O pagador de promessas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
MORAES FILHO, M. Festas e tradições populares. São Paulo/Belo Horizonte: Edusp/Itatiaia, 1979.
SCHWARCZ, L. K. M. Complexo de Zé Carioca. Notas sobre uma identidade mestiça e malandra. Disponível em: <http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_29/rbcs2 9_03.htm>. Acesso em: 01 jun. 2007.
Texto originalmente publicado na tese intitulada Brasil: nas melhores lojas do ramo, em livro e DVD, defendida pela autora deste artigo, em setembro de 2009, na Universidade Federal do Paraná.
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