Três violências e uma pergunta retórica
“Cuidado que assim você pode levar tiro, hein?”
A frase acima não foi retirada de alguma cena dos filmes Tropa de Elite, sucesso de José Padilha, do início do século. Muito menos registrada em jogos ou brincadeiras de crianças que enaltecem a violência como se fossem obras da ficção de HQs da Marvel. A frase foi dita por um homem de meia idade em pé na frente de um bar numa noite qualquer quando, distraído, errei a porta do carro. Confundi dois carros pretos de modelos semelhantes. Isso com uma caixa de pizza na mão, saindo de uma dessas novas e grandes padarias de conveniência.
“Esse é o João [nome fictício], que morreu lá no morro do Jaca [Morro do Jacaré, comunidade do Rio de Janeiro]. Aí fiz esse edit.”
A frase acima foi dita por uma criança de 12 anos, estudante da rede pública de uma cidade da Baixada Fluminense, com enorme naturalidade. A menina, hiperativa, comunicativa, inteligente e com enorme dificuldade de aprender a ler e escrever, contou que a diversão fora da escola é editar vídeos de pessoas com armas na mão, cordões de ouro no pescoço e várias cenas com muitas bebidas alcoólicas em ambientes periféricos. Onde ela consegue os vídeos para edição? Em grupos do whatsapp. A cada vídeo editado a menina conta receber entre 10 e 20 reais.
“Você é um arrombado, sabia?”
Essa frase foi dita por um homem ao volante para outro homem dirigindo outro carro quando estavam a centímetros de distância em um congestionamento. O alvo do xingamento respondeu que “sim”, serenamente. Tudo porque o homem xingado tentava criar uma terceira via em uma rua residencial de mão dupla. Fruto da impaciência, da falta de educação e do egoísmo que assola muitos dos que vivem atravancados na imobilidade urbana.
Em abril de 2023 é possível dizer que a pandemia de covid-19 está mais perto do controle e do fim do que em seu auge, em 2020 e 2021. No entanto, muitas sequelas são profundas e duradouras. A minha, por exemplo, é um pânico social de locais com muitas pessoas, pouca paciência para eventos fora de casa e um cansaço mental de tanto tentar me proteger de ruídos cotidianos que podem resultar em tragédias.
Em escolas públicas, principalmente nos subúrbios e periferias, uma das grandes sequelas é a lacuna de dois anos de ensino remoto ou híbrido feito de forma precária e que produz uma educação ainda mais capenga do que antes. Estudantes com sensação de aprisionamento nas escolas. Fato que piora com as recentes tragédias envolvendo invasores e a campanha de medo nas redes sociais.
O que, afinal, conecta o homem de meia idade que ameaça atirar em alguém por tão pouco, o motorista que produz o ódio através do egoísmo e a criança que normaliza a imagem da violência? A pergunta talvez seja retórica. No entanto, para não ficarmos sem esperança, há uma boa notícia. A estudante confessou ao professor que tinha parado de editar vídeos. Pediu ajuda na leitura. É um começo.