Algo Antigo, de Arnaldo Antunes: Multimodalidade e Escrita Híbrida

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No final da década de 1990, Luís Arata já anunciava mudanças significativas, ao afirmar: “[…] a literatura está se movendo de suas origens em tradições orais para o futuro das experiências atuais na nova mídia” (Arata, 1999, tradução nossa). Posteriormente, o linguista Luiz Antônio Marcuschi registrou uma profusão de novos gêneros textuais, a maioria deles exclusiva do ambiente digital (Cf. Marcuschi, 2010). E, para completar esse percurso, em decorrência dos avanços tecnológicos que caracterizam o século XXI, Leyla Perrone-Moisés aponta uma das mutações sofridas pelo texto literário, nesse mesmo período: “Os valores buscados numa narrativa […], atualmente, são a veracidade, a força expressiva e comunicativa” (Perrone-Moisés, 2016, p. 36). 

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Em meio a essa corrente ininterrupta de acessibilidade, no contexto atual, a comunicação exige que as pessoas desenvolvam competências distintas, devido à multimodalidade. A cada novo suporte e a cada nova rede social, outros gêneros textuais surgem, consolidando-se pouco a pouco. Além disso, textos totalmente distintos convivem e, nas hipermídias, chegam a dividir a mesma tela. No entanto, há ainda os textos físicos, impressos ou manuscritos, aumentando a complexidade do processo comunicativo, neste início do século XXI:

Ao lermos um texto manuscrito, um texto impresso numa página de revista, ou na tela de um computador, estamos envolvidos numa comunicação multimodal. Consequentemente, os gêneros textuais falados e escritos são também multimodais [...]: palavras e gestos, palavras e entonações, palavras e imagens, palavras e tipografia, palavras e sorrisos, palavras e animações etc. (Dionísio, 2005, p. 178) 

Algo antigo, de Arnaldo Antunes, consolida-se como um produto multimodal tanto na forma impressa, quanto na versão videográfica. Entretanto, os vídeos on-line acentuam essa característica, já que acrescentam novas camadas – na composição e, consequentemente, no sentido do texto. Isso ocorre devido ao movimento e ao aspecto sonoro, principalmente. No que se refere ao livro físico, o estilo do autor contribui para que a publicação, apresentada pela própria editora como um “livro de poemas” (Companhia das Letras, 2021), subverta esse rótulo, porque os textos não se restringem às palavras, nem à estrutura tradicional do verso.

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Ao invés disso, algumas linhas formam curvas, círculos e às vezes até se inscrevem verticalmente na página. Também no que diz respeito à forma, o livro abrange textos bastante diversos. Há diagramas, caligrafias, fotos e sobreposições. Além disso, anagramas e palíndromos são usados como poemas e a língua portuguesa combina-se com o código binário, que é específico da tecnologia digital. 

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Afeito à pluralidade, Arnaldo Antunes sempre contribuiu para instituir um novo conceito de texto, termo que há tempos não corresponde mais apenas aos signos verbais Diante disso, outro paradigma é estabelecido, segundo o qual um texto é tudo aquilo que comunica algo. A partir desse pressuposto, amplia-se o que se entende por texto, já que as pessoas reagem a tudo o que veem, leem ou ouvem (Fig. 1):

Algo Antigo, de Arnaldo Antunes: Multimodalidade e Escrita Híbrida
Figura 1: Nos shows de Arnaldo Antunes, tudo deve ser lido: o figurino, o cenário, a performance… Imagem disponível em: https://www.achabrasilia.com/arnaldo-antunes/

O que muda é o tipo de reação, que corresponde ao perfil específico de cada receptor, leitor ou ouvinte: “Tudo isso permite apontar, mais uma vez, para a importância da leitura […] no seu sentido amplo, imagens […] sons, palavras escritas, gestos, cheiros ou gostos” (Oliveira; Jardim Filho, 2015, p. 159).

Entre o livro e os vídeos, um ponto comum, que abrange não somente a multimodalidade, mas também a intermidialidade, é que as fotos usadas pelo autor perdem a materialidade e são assimiladas pelas mídias que as recebem. Uma vez na tela ou na página, as fotos não podem mais ser manuseadas, como objetos tridimensionais, limitando-se a serem mostradas e enclausuradas pela nova moldura (página/tela).

Apesar disso, livro e vídeos assumem a pluralidade semiótica, valendo-se de poemas escritos, caligrafias e fotos, por exemplo, tal como foi citado no parágrafo anterior. Devido a isso, pode-se afirmar que ambos os processos criativos privilegiam a “fusão” ou a “síntese de mídias”, termos usados por Jen Schröter, porque reúnem “diferentes formas de mídias em um contexto institucionalizado” (Schröter, 2012, p. 20, grifo no original, tradução nossa). 

Sob esse viés, em Algo antigo, na forma impressa ou nos vídeos on-line, Arnaldo Antunes lança mão de uma “mistura conceitual”, inerente às obras produzidas em rede, porque privilegiam um “espaço combinado” (Turner; Fauconnier, 2003, tradução nossa). Essa hibridização torna-se obrigatória no ciberespaço, caracterizado pela “interdependência dos elementos dentro de um ambiente em constante fluxo” (Santaella, 2006, p. 32). Por fim, para completar a relação entre conceitos já conhecidos e que priorizam a pluralidade, pode-se aproximar o projeto transmidiático de Arnaldo Antunes à categoria de intermidialidade que Irina Rajewsky denomina “combinação de mídias”: 

A qualidade intermidiática dessa categoria é determinada pela constelação midiática [...]. [...] a combinação de diferentes formas midiáticas de articulação pode levar à formação de gêneros de arte ou de mídias [...], em que a estrutura plurimídia [...] se torna a sua especificidade. (Rajewsky, 2005, p. 51-52) 

Usando componentes que tradicionalmente não são associados à arte literária, por excederem os âmbitos da palavra escrita e do caráter temporal, Arnaldo Antunes propõe experimentações frequentes, a si mesmo, ao público e também à crítica, apropriando-se dos recursos da computação gráfica e da Internet: “A poesia digital não tem a preocupação de finalidade no sentido do desafio conclusivo, mas em ser uma linha que se expande em busca do experimento” (Azevedo, 2011, p. 266). Alterando a mídia em que se cria e em que se divulga uma obra, não se alteram somente o conceito de texto e as possibilidades criativas do autor. Modificam-se também o percurso de leitura e o perfil dos leitores.


Excerto do artigo “Transmidialidade e reescrita criativa em Algo antigo, de Arnaldo Antunes”, publicado na revista Soletras (UERJ), n. 46, 2023, p. 53-77.

REFERÊNCIAS:

ANTUNES, A. Algo antigo. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. 

ARATA, L. O. Reflections about interactivity. 1999. Disponível em: https://web.mit.edu/comm-forum/legacy/papers/arata.html. Acesso em: 27 jun. 2015.

AZEVEDO, W. A não diacronia da poesia digital e a influência do poema processo. In: RETTENMAIER, M.; RÖSING, T. (orgs.). Questões de literatura na tela. Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2011. p. 256-270.

COMPANHIA DAS LETRAS. Lançamento do livro “Algo antigo”, com Arnaldo Antunes e Adriana Calcanhotto. 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Mk8ERWEKgmA. Acesso em: 12 nov. 2021.

DIONISIO, A. P. Multimodalidade discursiva na atividade oral e escrita. In: MARCUSCHI, L. A.; DIONISIO, A. P. (orgs.). Fala e escrita. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p. 177-204.

MARCUSCHI, L. A. Gêneros digitais emergentes no contexto da tecnologia digital. In: ______. Hipertexto e gêneros digitais. São Paulo: Cortez, 2010. p. 13-68.

OLIVEIRA, S. R. R. e; JARDIM FILHO, A. J. Leitura de imagens, e não só: leitura da vida. Gearte, Porto Alegre, v. 2, n. 2, p. 147-161, 2015. 

PERRONE-MOISÉS, L. Mutações da literatura no século XXI. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

RAJEWSKY, I. O. Intermediality, intertextuality and remediation. Intermédialtés/intermedialities, Montreal, n. 6, p. 43-64, 2005. 

SANTAELLA, L. A poesia concreta como precursora da ciberpoesia. 2006. Disponível em: http://issuu.com/mimacarfer/docs/outubro. Acesso em: 28 abr. 2015.

SCHRÖTER, J. Four models of intermediality. In:  HERZOGENRATH, B. (ed.). Travels in intermedia[lity]. Lebanon: Dartmouth College Press: 2012. p. 15-37.

TURNER, M.; FAUCONNIER, G. Conceptual blending. 2003. Disponível em: http://tecfa.unige.ch/tecfa/maltt/cofor-1/textes/Fauconnier-Turner03.pdf. Acesso em: 3 out. 2018.

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