A Intertextualidade Musical em “Trilhas Sonoras de Amor Perdidas”, de Felipe Hirsch
Em “Trilhas sonoras de amor perdidas”, a música é elemento diegético, porque integra a narrativa criada pelo diretor, e autônomo, pois existe também fora do âmbito teatral. Nesse sentido, se analisadas isoladamente, as canções são hipotextos, mas, na intertextualidade, tornam-se componentes de um hipertexto. Além disso, essa espécie de adaptação – não de uma, mas de várias músicas – resgata a metodologia dadaísta, na qual tudo era recriado (Fig. 1).
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Para a maioria dos críticos, o perigo da intertextualidade é a ruptura causada pela intercalação: “Alguns números musicais ameaçam […] perturbar a coerência e a previsibilidade do mundo narrativo […]” (MARSHALL; STILWELL, 2000, p. 44, tradução nossa). A peça em análise contraria essa regra, realçando a continuidade e conferindo naturalidade à história.
Segundo Gerárd Genette, há dois processos diferentes: a citação, que é a “forma mais explícita e mais literal”; e a alusão, considerada “menos explícita e menos literal” (GENETTE, 2005, p. 9). Em “Trilhas sonoras de amor perdidas”, todas as músicas são citações.
Quanto ao aspecto psicológico, é primordial destacar que: “O personagem deve carregar o peso do conteúdo emocional da música […]” (MARSHALL; STILWELL, 2000, p. 11, tradução nossa). Além disso, a sonoridade dá vida aos personagens, tornando-os mais reais: “Mais do que apenas subverter a ordem narrativa usual, sua [dos personagens] autoexpressão parece quase permitir que eles saiam do texto que ocupam” (p. 11, tradução nossa). Portanto, a música atua como reforço da imagem/cena e da palavra falada, exemplificando a relação de “redundância e informatividade” (SANTAELLA; NÖTH, 2009, p. 54).
PERSONAGEM-NARRADOR: Eu conheci a Soninho no dia 13 de fevereiro de 1988. Nós nos casamos no dia 8 de janeiro de 1989. Nós ficamos casados por cinco anos e três meses. A Soninho morreu no dia 11 de maio de 1994, subitamente, em casa, comigo, de embolia pulmonar. Ela tinha 23 anos. O seu corpo foi enterrado na encosta de uma colina. (Toca a música “So little time”, de Diana Dors.) (HIRSCH, 2011)
Nesse trecho, o espectador é informado sobre a cronologia da história. Analisando o texto, constatamos o pouco tempo de vida, tanto de Soninho quanto do relacionamento do casal. Portanto, a escolha da música é mais do que apropriada, atuando perfeitamente como reforço, não só pelo título, “So little time”, mas também pelo conteúdo: “Vou pegar o rosto dele nas minhas mãos / Beijá-lo até que ele entenda / que nós temos tão pouco tempo” (HIRSCH, 2011, tradução nossa). O casal teve pouco tempo, a julgar pela morte prematura de Soninho. Sendo assim, a música de Diana Dors enfatiza isso. Segundo Linda Hutcheon, a música e os ruídos “acentuam e dirigem as respostas do público a personagens e à ação” (HUTCHEON, 2011, p. 70). Nesse sentido, a música de Dors desempenha uma função fática (JAKOBSON, 2007), potencializando o envolvimento emocional do público.
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Quanto aos personagens, a música também facilita a expressão. “Música e palavras juntas podem dar uma voz clara às emoções aparentemente mais confusas, sugerindo que não há nada que não possa ser expresso, […] para que todos os nossos sentimentos possam ser ouvidos e compreendidos […]” (MARSHALL; STILWELL, 2000, p. 12, tradução nossa). A história do espetáculo retrata perda, associada a viuvez e recomeço. Inclusive, na peça, há uma fala que faz menção a essa função da música: “As play-lists dos seus iPods hoje parecem extremamente high-tech, mas elas são apenas mais uma mutação tecnológica, temporária, programada pra fazer aquilo que a música sempre fez, que é fazer com que as pessoas emocionalmente deformadas se comuniquem umas com as outras” (HIRSCH, 2011).
A música cumpre função de extravasar, traduzindo o que vai além de gestos ou falas. Trata-se da “incorporação do excesso”, porque “a vida não pode ser contida em sua forma ordinária; é necessário ultrapassá-la em ritmo, som e movimento” (HUTCHEON, 2011, p. 71). Aliás, o próprio diretor comentou esse processo: “No ‘Trilhas’, a música é o conteúdo de algo que de alguma maneira vai traduzir uma emoção em relação com outra pessoa, […]. Nesse aspecto, a música é muito mais conceitual. […] é muito mais temática” (TOMAZZONI, 2019).
Em outros momentos, porém, as canções estabelecem ironia:
SONINHO: Eu não sou tão bonita quanto ela, sou? PERSONAGEM-NARRADOR: [...]. Amor, essa mulher aí é a top model número um do mundo. SONINHO: Ué, e daí? PERSONAGEM-NARRADOR: E daí? (Toca a música “The greatness and perfection of love”, de Julian Cope e Teardrop Explodes.) (HIRSCH, 2011)
Isso fica claro a partir da tradução do título: “A grandeza e a perfeição do amor”, já que o radialista é obrigado a corrigir sua argumentação, para dar uma resposta adequada à Soninho, fazendo valer a tal “grandeza”. Entretanto, considerando a letra da canção, o sentido da cena é reorientado: “A maior imperfeição é o amor, o amor, o amor / Mas eu não consigo manter o fogo longe / Tome seu lugar / E leve o seu tempo / E é isso o que importa” (HIRSCH, 2011, tradução nossa). Isso sugere que o personagem-narrador poderia contrariar as expectativas de Soninho. Sendo assim, as pistas do título e do conteúdo da música podem ser consideradas flashforwards prováveis, aguçando a imaginação do público e revelando a sutileza discursiva do diretor, na seleção musical e na montagem do espetáculo.
Em outros momentos da peça, o diretor explora a metalinguagem. Em uma cena, revela-se que Marc Bolan, vocalista do T-Rex, fez parte da vida de Soninho: “Marc Bolan foi o primeiro amor da vida dela. E eu fui o último. (Toca a música “Children of revolution”, de T-Rex)” (HIRSCH, 2011). Posteriormente, Hirsch utiliza a música para remontar os anos 1980, quando era comum gravar uma seleção de músicas para a pessoa amada:
SONINHO: [...]. Eu terminei com ele e fiquei com a fita, porque as músicas eram realmente fantásticas. Eu comecei a namorar o Bruno. Uma noite, ele tocou um CD dele que incluía muitas das mesmas músicas da minha fita gravada de segunda mão. Eu adorei o CD e pedi pra ele me fazer uma cópia. O Bruno disse que não faria, porque uma ex-namorada tinha feito o CD pra ele. [...]. Não faça a mesma fita para múltiplos namorados! (HIRSCH, 2011)
A música, então, é contexto: personagens, lugares, hobbies, tudo gira em torno dela. Por fim, outro exemplo metalinguístico traz uma história da banda The New York Dolls:
[...] todo mundo só falava do Velvet Underground, mas eu só conseguia me lembrar dos Dolls, um mundo de garotas diabólicas, de saltos quebrados e homens travestidos e perigosos. Uma dessas garotas, chamada Connie, decepou do baixista Arthur “Killer” Kane, num ritual inexplicável. (Toca a música “Looking for a kiss”, de New York Dolls.) (HIRSCH, 2011)
Aqui, o público tem acesso a um fato específico, conhecido pelos fãs mais aficionados. Em forma de testemunho, o personagem-narrador fala da revolução causada por Lou Reed e pelo Velvet Underground, relembra o dia da morte de Kurt Cobain (do Nirvana), além de outros episódios, notórios ou não, no meio musical.
Aliando imagem/cena, música e palavra falada, privilegia-se uma comunicação multimodal e intersígnica: “[…] esses três campos — visual, verbal e sonoro — se constituem nas três matrizes da linguagem e do pensamento que estão na raiz de todos os seus desdobramentos e misturas que o ser humano foi desenvolvendo ao longo de muitos séculos” (SANTAELLA, 2019, p. 85-86). Claramente, esse artifício atende a características fundamentais da sociedade contemporânea: “[…] a convergência representa uma transformação cultural, à medida que consumidores são incentivados a procurar novas informações e fazer conexões em meio a conteúdos de mídia dispersos” (JENKINS, 2013, p. 30). Atualmente, vivemos em uma era dominada pelo computador e pelo smartphone. O mundo plural e múltiplo está sempre ao nosso lado, a um clique de distância.
Este texto reescreve parte do trabalho apresentado no Seminário Internacional da Uniandrade, em 2022.
REFERÊNCIAS: