A CARNE, EM A MARVADA CARNE
Com o grande sucesso do filme Ainda estou aqui, Fernanda Torres continua a ser mencionada em todas as mídias (impressas e on-line). Por isso, decidi revisitar um dos capítulos da minha tese, sobre literatura brasileira e cinema nacional, e divulgar um filme que fez sucesso há 40 anos, mas que considero um título obrigatório para os cinéfilos de plantão. Você sabia que muito antes de estar no filme de Walter Salles, Fernanda Torres esteve em uma história inspiradora e divertida, dirigida por André Klotzel?
Quando fez a protagonista Carula, em A marvada carne, a atriz tinha apenas 19 anos e também foi premiada no 13º Festival de Gramado, ocasião em que o filme conquistou 11 Kikitos! E o sucesso continuou, ano após ano. Inclusive, em 2015, a ABRACCINE incluiu o longa na lista das 100 obras mais representativas do cinema brasileiro. O filme completo pode ser visto no YouTube, neste link: https://www.youtube.com/watch?v=y6oM2XdOVc4

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Em 1985, com A marvada carne, o diretor André Klotzel faz uma viagem no tempo, quando retoma as principais tradições da cultura caipira. O tom de homenagem a um modo de vida que alguns consideram obsoleto, mas que preserva peças importantes de nossa História, no que diz respeito aos aspectos folclórico, religioso, linguístico e até mesmo social, pode ser interpretado como reação clara à globalização.
No filme, a cultura caipira é vista como ponto de partida para a urbanidade, porque marca a evolução da sociedade, que, com o tempo, vai substituindo um modo de vida por outro, em decorrência do estreitamento das relações entre campo e cidade, e porque, mesmo com a mudança, a cultura caipira, apesar de ter perdido espaço, tem uma função essencial, porque funciona como contraponto para as atribulações da vida nas grandes metrópoles.
Para os protagonistas da história, Nhô Quim e Sá Carula, o cardápio usual era arroz, galinha d’angola, farinha de milho, mandioca e feijão (Fig. 2), como o protagonista explicita, na primeira cena da história: “Era farinha, feijão, arroz. Arroz, farinha, feijão. Era isso, a sol por sol, todo santo dia que Deus dava” (A marvada carne, 1985).

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Leite e seus derivados eram raridades, tanto é que Nhô Totó, pai de Carula, vive escondendo seu parco pedaço de queijo. Carne de porco e de caça também eram postas à mesa apenas uma vez ou outra e quebravam a rotina do povoado, razão pela qual, nessas ocasiões, era comum a participação de toda a vizinhança. O leite e a carne de gado, no campo, eram privilégios de poucos, dos fazendeiros da região, e não das famílias que se dedicavam apenas às culturas de subsistência.
Antonio Candido, em Os parceiros do Rio Bonito, referindo-se aos alimentos responsáveis pela variação, no cardápio habitual do caipira, menciona que esses “constituem elemento importante nas representações mentais do caipira, sendo sem dúvida um dos fenômenos recalcados de inquietação. […] as ‘misturas’ prediletas são o pão de trigo e a carne de vaca, ambos de raro consumo” (Candido, 2001, p. 170). A “inquietação” mencionada pelo autor revela o significado metafórico da carne, para Nhô Quim, porque ela simboliza a busca de uma vida melhor. Em contrapartida, o arroz com feijão reflete “aquela mesmice de fazê dó” (A marvada carne, 1985). Essa oposição acentua o valor simbólico dos alimentos, na narrativa.
A inquietação, portanto, constitui traço de fundamental importância para a releitura da cultura caipira proposta por Klotzel. Com caráter totalmente oposto ao de Jeca Tatu, Nhô Quim é mais um inquieto disposto a “mudar o mundo”. Nas duas vezes em que o personagem parte em busca de seu objetivo, é o fato de ele achar tudo “muito igual” que o impele. A princípio, o personagem tenta realizar seu sonho, mantendo-se no campo, quando sai do lugar onde mora e vai em busca de uma parente distante, Nhá Tomaza, no “Arraiá da Véia Torta”, para “assentá rancho” por lá. Porém, apesar de conseguir uma mulher e filhos, faltava-lhe, ainda, a “carnica” de um boi de verdade. O personagem não mede esforços para concretizar o sonho da carne, que simboliza a metrópole. Quim convence-se de que apenas na cidade grande conseguirá comer carne de boi e, depois de fazer negócio até com o Diabo, parte em sua aventura urbana.
Obviamente, ao chegar à cidade, torna-se presa fácil para os aproveitadores e, através da confusão entre “carne” e “carnê”, acaba comprando os bois que vê pela televisão da vitrine de uma loja (Fig. 3).

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Quim só se dá conta de que havia caído em um golpe, quando a imagem da tevê sai do ar. Como não era de desistir facilmente, porque “nada como um dia atrás do outro e uma noite no meio” (A marvada carne, 1985), Quim tenta um açougue, um shopping, até que a sorte chega para ele, em um mercado, durante um saque. Ele percebe que aquela é sua chance, afinal, não estaria cometendo nenhum crime, já que apenas agiria como todos os outros. De fato, Quim não perde a oportunidade. Pega um pedaço de carne que estava sobre a balança do açougue e ganha as ruas, em uma corrida pela cidade, em meio a carros e arranha-céus (Fig. 4).

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A cena é antológica e marca a vitória do caipira, apesar de ficar evidente a diferença que ele representava na cidade grande, mas o que realmente importava era que o êxodo (e, principalmente, a carne) tinha garantido sua “inclusão”, naquele mundo novo e “civilizado”, que, para ele, era garantia de progresso. O sonho da metrópole concretizou-se. A carne, espécie de troféu, ganha destaque na cena, em meio aos tons de bege e cinza, que compõem o cenário e o figurino do personagem.
A carne representa o ingresso de Quim em outra sociedade. O personagem ganha um novo status, como fica evidente, no final. Quim e sua família fazem um churrasco (com muita carne de boi, claro) na casa nova, de alvenaria (Fig. 5). O cenário é totalmente urbano e há muita gente. Para marcar a diferença dessa etapa da vida do personagem em relação às anteriores, é usado o plano panorâmico. A música também é outra, para acompanhar a mudança do estilo de vida.

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Quem não tem uma história dessas na família? As diásporas movem o mundo. Cruzando fronteiras, de um país a outro ou de uma cidade a outra, o objetivo é sempre o mesmo: uma vida melhor. No final da década de 1950, minha avó deu um ultimato a meu avô. Reuniu algumas coisas, juntou os dois filhos e disse que estava de partida. Eles moravam em União da Vitória, naquela época, mas ela era uma inquieta (assim como Quim) e queria mais. Uma semana depois, minha avó, meu pai e minha tia chegavam de trem a Curitiba, com uma pequena mudança (malas, cobertores, uma mesa e algumas cadeiras). Alguns dias depois meu avô também veio, após acertar detalhes na empresa em que trabalhava. Aquela viagem mudou a história deles e mudou a minha também. E quanto a você? Qual fato passado determinou o seu presente?
Como Nhô Quim fala, no fim do filme, “entrou por uma porta e saiu por otra e quem quis é que conte outra” (A marvada carne, 1985). Então: qual é a sua história?
REFERÊNCIAS
A MARVADA carne. Direção de André Klotzel. Brasil: Cláudio Kahns e Tatu Filmes; Embrafilme, 1985. 1 dvd (77 min); son.
CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito. São Paulo: Duas Cidades; 34, 2001.
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Versão atualizada de um excerto da tese intitulada Brasil: nas melhores lojas do ramo, em livro e DVD, apresentada e defendida por Verônica Daniel Kobs, em setembro de 2009, na UFPR.