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O vírus SARS-CoV-2 e a retomada do Apocalipse Zumbi

Na era do novo gótico, os zumbis são os protagonistas. Vários estudiosos do tema consideram que o ápice de uma das muitas retomadas dos mortos-vivos

Na era do novo gótico, os zumbis são os protagonistas. Vários estudiosos do tema consideram que o ápice de uma das muitas retomadas dos mortos-vivos e da estética gótica ocorreu depois do ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 às torres gêmeas, em Nova Iorque:

[…] os atentados de 11 de setembro de 2001 podem estar por trás dessa “Renascença Zumbi”: de repente, para o público ocidental, o fim do mundo nas mãos de forças assassinas voltava a ser um conceito plausível. Seja como for, os últimos anos viram algo em torno de 30 filmes sobre mortos-vivos a cada 12 meses, uma média sem precedentes […]. (SUPERINTERESSANTE, 2012, p. 38, grifo no original)

[…] o zumbi atinge proeminência inegável no mundo pós-11/09 para representar, de maneira avassaladora, as angústias tanto individuais quanto sociais. (GOMES, 2014, p. 98)

Essa relação pode parecer estranha, mas tem uma explicação bastante plausível: “Frequentemente observa-se que os ciclos de horror emergem em tempos de tensão social, e que o gênero é um dos meios pelo qual podem ser expressadas as ansiedades de uma era” (CARROLL, 1990, p. 207, tradução nossa). De fato, ao longo da história, o terror cumpre seu papel e passa a ser reeditado, sempre que necessário, para responder aos medos e à insegurança da sociedade e para refletir destruições e tragédias de proporções consideráveis. Em outras palavras: “O gótico sempre foi um barômetro das ansiedades que se manifestam em certa cultura, em um momento particular da história” (BRUHM, 2002, p. 260, tradução nossa).

No ano de 2020, por ocasião da pandemia de covid-19, o inconsciente coletivo e as artes voltaram a fazer referência ao apocalipse zumbi (Fig. 1). Como resultado, muitas obras que tratam de vírus, doenças, pestes e epidemias foram tiradas das sombras e passaram a ser rediscutidas, nas mídias. A lista dos autores é extensa, mas, a título de exemplificação, citamos apenas alguns nomes: Susan Sontag, Albert Camus, Gabriel García Márquez, Daniel Defoe, Edgar Allan Poe, Giovanni Boccaccio, José Saramago, Philip Roth, Geraldine Brooks, João do Rio, Valêncio Xavier…

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O pensador Zygmunt Bauman pode nos ajudar a compreender de que modo a pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2 relaciona-se ao apocalipse zumbi. Conforme o autor, a morte é o símbolo máximo do desconhecido e sempre que a ideia da morte surge, nas situações de medo e violência, acabamos por valorizar mais a vida:

A advertência memento mori, lembrar-se da morte, […] é uma afirmação do impressionante poder dessa promessa de lutar contra o impacto imobilizante da iminência da morte. […]. Lembrar a iminência da morte mantém a vida dos mortais no curso correto – dotando-a de um propósito que torna preciosos todos os momentos vividos. (BAUMAN, 2008, p. 47)

Desde março de 2020, o mundo não apenas se recordou da morte, mas a vivenciou, diariamente, e em diferentes níveis. Na imprensa, as notícias traziam fatos e imagens amedrontadores, que impunham uma realidade inacreditável a todos (Figs. 2 e 3):

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O vírus SARS-CoV-2 e a retomada do Apocalipse Zumbi 1
Figura 2: Cemitérios ao redor do mundo tiveram dificuldade para atender à demanda de mortes causadas pela covi-19. Imagem disponível em: https://www.hojeemdia.com.br/primeiro-plano/covid-19-cemit%C3%A9rios-e-funer%C3%A1rias-se-preparam-para-aumento-da-demanda-1.779670
O vírus SARS-CoV-2 e a retomada do Apocalipse Zumbi 2
Figura 3: Covas abertas no cemitério de Vila Formosa, em São Paulo, à espera dos mortos pela covid-19. Imagem disponível em: http://www.diariodomeiodomundo.com.br/2020/04/washington-post-expoe-covas-abertas-em.html

A imagem do cemitério brasileiro (Fig. 3) correu o mundo e foi mostrada até mesmo na capa do The Washington Post. “Coronavírus: Washington Post expõe covas abertas em cemitério de SP. Maior da América Latina, cemitério da Vila Formosa virou destaque na capa do jornal por causa da quantidade de covas abertas” (DIÁRIO DO MEIO DO MUNDO, 2021). Sem dúvida, a extensa repercussão, nesse caso, pode ser explicada pelo terror imposto pela foto, a partir da “apreensão de medo sublime e do horror como uma manifestação física do inexplicável e do anormal” (CAVALLARO, 2002, p. ix, grifo nosso, tradução nossa).

Essa conjunção de fatores negativos motiva o desejo de viver. É isso que nos impele à sobrevivência e, como mortos-vivos, os zumbis representam muito bem essa duplicidade: “Paradoxalmente, nós precisamos da consciência consistente da morte, proporcionada pelo Gótico, a fim de entendermos e desejarmos a vida” (BRUHM, 2002, p. 274, tradução nossa).

A fim de discutir essas associações, e para celebrar várias retomadas, recentemente revisitei um trabalho meu. Trata-se do artigo “Brás Cubas, o autor-zumbi de Memórias desmortas”, publicado na revista Scripta Uniandrade, no ano de 2014. A ideia era fazer um podcast, para comentar justamente a volta dos zumbis no circuito cultural, por causa da pandemia de covid-19. Para acessar o arquivo de áudio, basta acessar https://mestrado-e-doutorado.uniandrade.br/podcast/ ou clicar abaixo:

O artigo mencionado no podcast analisa o livro Memórias desmortas de Brás Cubas (2010), de Pedro Vieira. Logo no início da história, o narrador revela sua condição incomum, ao mesmo tempo em que se apresenta também como “autor” do romance machadiano, publicado em 1881: “Sei que todos vocês se perguntavam […]: ‘Ele morreu, mas o que aconteceu depois?’ Não preciso reiterar o óbvio. Algo aconteceu depois, ou não teria escrito minhas primeiras Memórias póstumas” (VIEIRA, 2010, p. 11, grifo nosso).

Vieira retomou o clássico Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, obra que permaneceu, ao longo dos séculos e, coincidentemente ou não, em 2020, ano em que a pandemia de covid-19 começou, o livro que inaugurou o realismo brasileiro foi relançado nos Estados Unidos, com estrondoso sucesso. Sem dúvida, isso completa nosso ciclo de retomadas, fechando-o com chave-de-ouro:

Livro de Machado de Assis em inglês esgota em um dia nos EUA

[…].

Em 2 de junho, a editora Penguin lançou nos Estados Unidos uma nova tradução do livro de 1881 Memórias Póstumas de Brás Cubas (em inglês, “The Posthumous Memoirs of Brás Cubas”). […].

Na Amazon e na livraria Barnes & Noble, o livro esgotou em apenas um dia. (VITORIO, 2021)

Embora a estética gótica, que teve início na Europa, no século XII, vá muito além dos zumbis, são esses monstros que representam hoje, em nossa época, o medo e o horror. Desde o filme O zumbi branco (1932), dirigido por Victor Hugo Halperin e estrelado por Bela Lugosi, passando pelas inesquecíveis produções de George Romero, nas décadas de 1960 e 1970, os mortos-vivos sinalizam o perigo, a morte e o medo coletivo.

De acordo com o documentário A verdade sobre os zumbis, existe a tese de que o vírus zumbi surgiu de uma mutação do vírus da raiva (NATIONAL GEOGRAPHIC, 2014), porém, na recente retomada dos mortos-vivos, motivada pela atual pandemia, o apocalipse zumbi está intrinsecamente ligado a outro tipo de vírus: o temido SARS-CoV-2.  

REFERÊNCIAS:
BAUMAN, Z. Medo líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
BRUHM, S. The contemporary Gothic: why we need it. In: HOGLE. J. E. (Ed.). The Cambridge Companion to Gothic Fiction. London: Cambridge University, 2002, p. 259-276.
CARROLL, N. The philosophy of horror or paradoxes of the heart. New York; London: Routledge, 1990.
CAVALLARO, D. Gothic vision. Three centuries of horror, terror and fear. London: Continuum, 2002.
DIÁRIO DO MEIO DO MUNDO. Coronavírus: Washington Post expõe covas abertas em cemitério de SP. 2 abr. 2020. Disponível em: http://www.diariodomeiodomundo.com.br/2020/04/washington-post-expoe-covas-abertas-em.html. Acesso em: 21 fev. 2021.
GOMES, A. S. (De)composiçõesdocorpo físicoesocial: aemergênciadozumbinaficção norte–americana contemporânea. Gragoatá, n. 35, Rio de Janeiro, 2014, p. 97-116.
KOBS, V. D. Brás Cubas, o autor-zumbi de Memórias Desmortas [Podcast]. Disponível em: https://mestrado-e-doutorado.uniandrade.br/podcast/. Acesso em: 21 fev. 2021.
_____. Brás Cubas, o autor-zumbi de Memórias Desmortas[Artigo completo]. Scripta Uniandrade, v. 12, n. 2, Curitiba, 2014, p. 9-29.
NATIONAL GEOGRAPHIC. A verdade sobre os zumbis. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=-wDIgAuDw18>. Acesso em: 22 ago. 2014.
SUPERINTERESSANTE. Zumbis: a ciência, a história e a cultura pop por trás do fenômeno. São Paulo: Abril, 2012.
VIEIRA, P. Memórias desmortas de Brás Cubas. São Paulo: Tarja, 2010.
VITORIO, T. Livro de Machado de Assis em inglês esgota em um dia nos EUA. 5 jun. 2020. Disponível em: https://exame.com/casual/livro-de-machado-de-assis-em-ingles-esgota-em-um-dia-nos-eua/. Acesso em: 21 fev. 2021.

Leia também:

https://recortelirico.com.br/2021/02/as-casas-de-fernando-pessoa/
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