Era uma vez em…. Hollywood: A reescrita inventiva da história

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Assistindo ao filme mais recente de Quentin Tarantino, Era uma vez em… Hollywood (EUA, 2019), as comparações com Bastardos inglórios (EUA, 2009) são inevitáveis. A razão para isso é uma só: há dez anos, o diretor reescrevia a história, vingando-se das crueldades de Adolf Hitler com uma sequência cinematográfica que matava o líder nazista queimado, dentro de um cinema. Agora, em Era uma vez em… Hollywood, o cineasta utiliza o mesmo recurso para responder a um dos crimes praticados pela família Manson. O longa foi lançado em 2019 e tem como contexto os assassinatos da atriz Sharon Tate Polanski (grávida de oito meses) e dos amigos dela: Jay Sebring, Wojciech Frykowski e Abigail Folger. As atrocidades foram cometidas no dia 9 de agosto de 1969, na Cielo Drive (Los Angeles, Califórnia), pelos jovens Charles Watson (conhecido como Tex), Patricia Krenwinkel, Susan Atkins e Leslie Van Houten, a mando de Charles Manson. 

Sem dúvida, a data do lançamento foi estratégica, se observarmos a efeméride: em 2019, a morte de Sharon Tate completou 50 anos. Aliás, o filme estreou em 15 de agosto, no mesmo mês dos assassinatos. Portanto, o tom de homenagem à atriz e a tentativa de reparação são bastante claros. Para isso, Tarantino cria os personagens Rick Dalton (um ator em crise) e Cliff (dublê oficial de Rick). Sendo assim, no melhor estilo metalinguístico, assistimos às gravações de Rick e também a trechos dos filmes em que ele já atuou. Um desses sucessos é 14 Fists of McClusky (Fig. 1), em que o personagem de Rick Dalton usa um lança-chamas para exterminar um grupo nazista (Figs. 2 e 3):

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Figura 1: Pôster do filme protagonizado por Rick Dalton, personagem de Leonardo DiCaprio em Era uma vez em… Hollywood. (Imagem disponível em: https://bit.ly/2KMPdqU)
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Figura 2: Em Era uma vez em… Hollywood, o protagonista mata nazistas com um lança-chamas (Imagem disponível em: https://bit.ly/2Ypow3g)
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Figura 3: Nazistas pegando fogo, em cena do filme Era uma vez em… Hollywood (Imagem disponível em: https://bit.ly/3bP7ShJ)

Como se sabe, o fogo representa, a um só tempo, fim e renovação, indicando um novo ciclo. Na obra de Tarantino, essa transição simboliza a reescrita e a atualização da história. É a resposta e a punição metafórica da arte aos vilões da história. Conforme já mencionado anteriormente, em Bastardos Inglórios (Fig. 4) isso também ocorre, oferecendo um final alternativo ao público. Evidentemente, nessa hora, é impossível não preferir a ficção à realidade. 

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Figura 4: Nazistas pegando fogo, em cena do filme Bastardos inglórios (Imagem disponível em: https://bit.ly/35swgDv)

O lança-chamas é uma arma militar, pois foi usado durante a Primeira Guerra Mundial e, depois disso, em outros conflitos bélicos. Aproveitando-se disso, Tarantino utiliza esse mesmo instrumento para representar o ideal de justiça, em seus filmes: “Não obstante a repetição da violência enquanto fórmula, observa-se outro tema recorrente, que é o da vingança como pano de fundo narrativo. Evidentemente, a finalidade é criar empatia, e preparar o terreno para o gozo catártico. A vingança faz a plateia se sentir ‘justiçada’, encontrando reverberação nos sentimentos sádicos do público” (FIGUEIREDO, 2013, p. 39, grifo no original). A fim de complementar essa afirmação, sugerimos a leitura do trecho a seguir, em que o próprio Tarantino explica as funções da violência em seus filmes. Embora, nesta fala, o diretor tenha feito referência ao longa Django livre (EUA, 2013), há muitas semelhanças com Era uma vez em… Hollywood, seu sucesso mais recente:

Descobri que a catarse nos meus filmes tem dois efeitos: reage comigo, como cidadão e autor, porque permite-me observar os erros da História e “corrigi-los” no ecrã; e reage com o espectador, que vai poder identificar-se com as personagens e vibrar pela sua causa. [...]. O meu herói vem para vingar o sofrimento histórico dos negros americanos. (SOUSA, 2020, grifo no original)

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A arte, de fato, assume uma função social relacionada à catarse. Além disso, pela repercussão de um produto artístico, o efeito é coletivo, o que nos leva à chamada catarse de integração. Originalmente, conforme a concepção aristotélica, o aspecto catártico caracterizava principalmente as tragédias, resultando em um processo de purgação: “Suscitando a compaixão e o terror, a tragédia tem por efeito obter a purgação dessas emoções” (ARISTÓTELES, 2017). Entretanto, é possível que o autor também tenha tratado da catarse na comédia, em outra parte de sua obra, pois sabemos que a poética aristotélica chegou até nós incompleta:

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É bastante provável que em algum ponto o trabalho original de Aristóteles foi dividido em dois, e cada um "livro" constituía um rolo de papiro separado. A razão dessa suposição é que hoje se sabe que a obra não está completa, falta uma segunda parte, toda dedicada à comédia. Há suspeitas de que um documento chamado Tractatus Coislinianus traga o conteúdo resumido do livro perdido. (SILVA, 2020, grifo no original)

Sendo assim, na falta das palavras do próprio Aristóteles, recorremos às considerações de Peter Berger, autor que comenta a catarse na comédia: “A mágica do teatro, por certo, se expressa tanto na tragédia como na comédia e é intrínseca à catarse aristotélica que, idealmente, se engendra em ambas. A catarse da comédia, […] em tons bastante suavizados, […] reitera a catarse primordial da orgia dionisíaca” (BERGER, 2020).  A “orgia dionisíaca” mencionada por Berger justifica a inversão e o caos usados por Tarantino, na escrita do roteiro de Era uma vez em… Hollywood. Em vez de manter o tom de tragédia e pesar, pelos assassinatos cometidos em 1969, o diretor lança mão da comédia, para propor um final ideal para a história. Com esse artifício, o luto e o sofrimento são mantidos, mas com uma vantagem: diretor, elenco, público e crítica experimentam a catarse pelo riso desenfreado que define as duas últimas partes do roteiro, que encenam não a morte de Sharon Tate e dos amigos dela, mas o fim macabro dos jovens pervertidos que integravam a família Manson (Fig. 5).

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Figura 5: Final de Era uma vez em… Hollywood, quando uma das garotas de Manson é atacada por Cliff e pela cadela Brandy. (Imagem disponível em: https://bit.ly/35huWmv)

A surpresa começa quando os assassinos chegam à casa de Rick Dalton, na Cielo Drive, mesma rua da casa de Tate. Nesse instante, falamos a nós mesmos: “Ué! Mas não era o Dalton quem deveria morrer nessa cena!” Depois disso, a câmera situa a ação: Dalton está na piscina, com fones de ouvidos; a mulher dele está dormindo, no quarto do casal; e o dublê Cliff, com a cachorra Brandy, estão entre a sala e a cozinha e, portanto, mais próximos da porta de entrada. No momento seguinte, ocorre a invasão e, nessa hora, outro pensamento nos vem à mente: “O pessoal do Charlie vai matar todos na casa.” Entretanto, não é isso o que acontece. Cliff era um bom lutador (tanto que, em uma das sequências do filme, durante uma discussão, em um set, chegou a derrotar o lendário Bruce Lee, que treinava o elenco de um longa), mas sobre Brandy sabíamos apenas que era uma cachorra treinada para esperar a hora do jantar. Felizmente, Brandy também sabia ser agressiva, atendendo aos comandos de seu dono.

A partir dessa recontextualização, a violência surge tarantinamente, com close-ups de cabeças esmagadas e sangue jorrando. Esse excesso, que caracteriza os filmes do diretor, institui a estética trash, que combina perfeitamente com o desenlace inusitado e paródico, que alcança seu ápice quando Rick Dalton ouve o barulho de uma imensa janela se partindo e vê Leslie, uma das garotas Manson, atravessando o vidro e caindo na piscina. Dalton age rapidamente, incinerando a assassina com um lança-chamas, lembrança que guardava de um de seus filmes (Fig. 1). Analisando o estratagema de Tarantino, percebemos que a catarse ocorre pelo enfrentamento do medo e da retomada da tragédia real, usando alta dose de humor negro. Isso se explica mais facilmente com estas palavras de Zygmunt Bauman: “[…] temos medo de que as catástrofes que atormentaram nossos ancestrais não apenas tendam a se repetir, mas também sejam inescapáveis” (BAUMAN, 2008, p. 124). O filósofo completa a ideia, afirmando que o medo está ligado ao “desconhecido”, ao “incompreensível” e ao “incontrolável” (BAUMAN, 2008, p. 125). “A compreensão [do medo] nasce da capacidade de manejo. O que não somos capazes de administrar nos é ‘desconhecido’, o ‘desconhecido’ é assustador. Medo é outro nome que damos à nossa indefensabilidade” (BAUMAN, 2008, p. 125, grifo no original).

Portanto, Tarantino trata de se apropriar dos fatos, conhecendo-os a fundo, para mais bem compreendê-los e, enfim, controlá-los completamente, a ponto de inverter o final da história, dando vida àqueles que morreram e garantindo uma morte cruel aos assassinos. É justamente nesse turning point que o riso se instala. Rimos copiosamente, surpreendidos pelas habilidades de Cliff, Brandy e Dalton, e nos deleitamos com a vingança do pipoqueiro Quentin Tarantino, que faz questão de mostrar o desespero de Leslie, correndo, agitando os braços para o alto e gritando sem parar, enquanto sangra, até jazer carbonizada, na piscina de Rick. Na sequência final, Jay ouve o barulho na casa do vizinho e conversa com Dalton. Sharon fica sabendo do ocorrido e convida Rick para entrar. Logo na entrada da casa da atriz, Frykowski e Abigail também vêm receber o novo amigo. Na versão de Tarantino, tudo acabou bem para os moradores da Cielo Drive, naquela fatídica noite de agosto de 1969.

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Evidentemente, a arte autoriza esse tipo de apropriação. Segundo Aristóteles, “não compete ao poeta narrar exatamente o que aconteceu; mas sim o que poderia ter acontecido, o possível, segundo a verossimilhança ou a necessidade” (ARISTÓTELES, 2017, grifo nosso). Mais adiante, na Arte poética, o autor complementa: “Embora lhe aconteça apresentar fatos passados, nem por isso deixa de ser poeta, porque os fatos passados podem ter sido forjados pelo poeta, aparecendo como verossímeis ou possíveis” (ARISTÓTELES, 2017). Aplicando esses princípios ao cinema de Tarantino, chegamos a este comentário de Lúcia Nagib, que sintetiza o estilo do diretor: “[…], o cinema de fato tendeu, a partir de meados dos anos 80, à reciclagem do passado na forma de citação, paródia de gêneros consagrados e estetização da violência, no estilo de David Lynch e, mais tarde Quentin Tarantino, em que a descrença na história se combina com o humor negro e o cinismo político” (NAGIB, 2006, p. 15-16).

Aproveitando o gancho da “descrença”, é hora de analisarmos mais detidamente o título do filme — Era uma vez em… Hollywood —, afinal, segundo Umberto Eco: “O sinal textual (quer dizer, interno) de ficcionalidade mais óbvio é uma fórmula introdutória como ‘Era uma vez’” (ECO, 1999, p. 126). A tal “fórmula” mencionada aqui está em todos os contos de fada, e no longa de Tarantino, ressaltando que

[…] o leitor precisa aceitar tacitamente um acordo ficcional, que Coleridge chamou de “suspensão da descrença”. O leitor tem que saber que o que está sendo narrado é uma história imaginária, mas nem por isso deve pensar que o escritor está contando mentiras. […]. Aceitamos o acordo ficcional e fingimos que o que é narrado de fato aconteceu. (ECO, 1999, p. 81, grifo no original)  

Claro que, para o espectador desavisado (como eu, que fiz questão de assistir ao filme sem ler, nem ver nada a respeito, para garantir uma sessão-surpresa, livre de interferências) o uso da expressão “era uma vez”, no título do filme, dava a impressão de uma simples retomada, focalizando uma sociedade com problemas bem diferentes daqueles que vemos em nosso tempo… Ledo engano! O filme de Tarantino segue à risca a tradição dos contos de fada: “Essas formas [o conto de fadas, os mitos e as divinas comédias de redenção], no mundo antigo, eram consideradas de natureza mais elevada que a tragédia, manifestações de uma verdade mais profunda, de percepção mais difícil, de estrutura mais sólida e de revelação mais completa” (CAMPBELL, 1997, p. 35). Além disso, o cineasta usa o gênero textual em questão para construir a paródia, que, aliás, dá total sustentação à crítica e à invenção, que permeiam o roteiro.

Outro aspecto fundamental, e que justifica a escolha do modelo de conto de fadas, é a possibilidade de, a partir dele, consolidar a transição da tragédia (que cercava o episódio histórico do múltiplo assassinato) para a comédia (que predomina no final do filme), sem perder o efeito psicológico/catártico e sem abandonar o vínculo com a realidade, apesar da subversão dos fatos: “É próprio da mitologia, assim como do conto de fadas, revelar os perigos e técnicas específicos do sombrio caminho interior que leva da tragédia à comédia. Por conseguinte, os incidentes são fantásticos e ‘irreais’: representam triunfos da natureza psicológica […]” (CAMPBELL, 1997, p. 35, grifo no original). Claro que Joseph Campbell reconhece a base real dos contos de fada, apesar de esse autor considerar essa associação como algo distante e intrincado.

Em contrapartida, Peter Berger analisa os mesmos temas, a partir de uma perspectiva mais prática e objetiva: “[…] a comédia é constituída por um ato de ‘duplicação’” (BERGER, 2020, grifo no original), instituindo “um contramundo ao mundo da vida cotidiana. A tragédia, certamente, faz o mesmo. Pode-se argumentar, contudo, que a duplicação da comédia é mais radical. […]. Consequentemente, a suspensão necessária da dúvida (que os fenomenólogos chamam de epoché) deve ser mais radical no caso da comédia” (BERGER, 2020).  Combinando os dois teóricos, conseguimos montar o quebra-cabeças, reunindo as peças que faltavam: retomando o pensamento de Campbell, chegamos ao teor ficcional e “irreal” das tragédias, das comédias e dos contos de fadas; posteriormente, seguindo o raciocínio de Berger, concluímos que a comédia e o conto de fadas estreitam os laços, o que nos ajuda a entender a escolha de Tarantino (bem à moda dos contos de fadas escritos pelos irmãos Grimm)

E assim a história foi reescrita. Porém, nessa versão, os vilões foram exemplarmente punidos e os mocinhos viveram felizes… forever… and ever!

LEIA TAMBÉM
https://recortelirico.com.br/2020/04/civilizacao-do-espetaculo-2/

REFERÊNCIAS                               
ARISTÓTELES. Arte poética. Disponível em: <file:///C|/site/livros_gratis/arte_poetica.htm>. Acesso em: 23 ago. 2017.
BAUMAN, Z. Medo líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
BERGER, P. L. O riso redentor: a dimensão cômica da experiência humana. Disponível em: <https://books.google.com.br/books?id=Fuw9DwAAQBAJ&lpg=PT126&ots=qUQVmGS9MY&dq=catarse%2Briso&hl=pt-BR&pg=PT126#v=onepage&q=catarse+riso&f=false>. Acesso em: 23 abr. 2020.
CAMPBELL, J. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix; Pensamento, 1997.
ECO, U. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
ERA uma vez em… Hollywood. Direção: Quentin Tarantino. EUA: Heiday Films, Bona International Film Group, Columbia Pictures, Sony Pictures Entertainment e Visiona Romantica; Sony Pictures, 2019. 161min, colorido.
FIGUEIREDO, H. Quando matar é cool: Tarantino e a estetização da violência. In: ZACHARIAS, J. C. (Org.). Quentin Tarantino. Rio de Janeiro: Jurubeba Impressões, 2013, p. 32-43.
NAGIB, L. A utopia no cinema brasileiro: matizes, nostalgia, distopias. São Paulo: Cosac Naify, 2006. 
SILVA, E. S. Poética (obra de Aristóteles). Disponível em: <https://www.infoescola.com/literatura/poetica-obra-de-aristoteles/>. Acesso em: 26 abr. 2020.
SOUSA, F. de. Outra obra-prima de Tarantino. Disponível em:<https://interesseseaccao.blogspot.com/2013/02/mais-uma-obra-prima-de-tarantino.html>. Acesso em: 24 abr. 2020.

5 thoughts on “Era uma vez em…. Hollywood: A reescrita inventiva da história

  1. Isso é uma pérola, professora! Eu, que adoro Tarantino e adoro Django Livre (não só pela produção impecável, mas por me sentir vingado, como negro) consegui admirar mais a última produção do Quentin. Achei, na oportunidade, exagerado a quantidade de prêmios dados ao longa, entretanto, depois desta explanação tão minuciosa, começo a reconsiderar.

    Obrigado!

  2. Que explanações maravilhosas! Eu havia sentido muitas dessas sensações, porém não as conseguia definir… obrigadíssima!

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