A Conclamação no Filme RRR: Revolta, Rebelião e Revolução
RRR: Revolta, rebelião, revolução (IND, 2022), dirigido por S. S. Rajamouli, dá voz aos oprimidos e tenta mostrar que a superação é sempre uma possibilidade. No ano passado, o longa venceu nas seguintes categorias: Melhor Diretor (New York Film Critics Ciecle Award); Melhor Filme Estrangeiro (Critics’ Choice Award); Menção Honrosa (Satellite Award); e Melhor Canção Original (Oscar).
Alerta de Spoilers!
A produção, ao estilo de Bollywood, alia a energia contagiante do elenco à alegria do público. A plateia indiana é um espetáculo à parte, motivada pelos números musicais e pelos encontros/desencontros da história.
Quanto ao conteúdo, RRR conta a história da Índia em 1920, dando destaque à colonização inglesa. No entanto, os oprimidos mostram tenacidade, resistência e desejo de vingança depois que os homens do governador Scott Buxton (Ryan Stevenson), representante da Inglaterra no território indiano, sequestram uma criança em uma tribo, nos arredores da cidade.
Diante disso, a tribo confia a Komaram Bheem (Nandamuri Taraka Rama Rao Jr.) a missão de ir à cidade e resgatar a garota. A cena a seguir representa o enfrentamento dos opressores, já que Komaram tenta derrotar um tigre, que serve de metáfora ao poder hegemônico, no filme representado pelo governador Scott (Fig. 1).
O tom de nacionalismo é claro no filme, que exalta as cores da bandeira indiana original, remetendo ao ano de 1906 e à cultura autóctone. Embora a História já tenha sido escrita, no enredo a tribo tenta superar o complexo de colonizado, assumindo as rédeas do próprio destino. Como consequência, a ordem é restabelecida: a menina volta para a tribo e o governador Scott é derrotado.
No entanto, para chegar à mais alta instância do poder, o destino acaba juntando um representante do povo, Bheem, e um policial, Ramaraju, que serve como ponte para o governador e para o alto escalão militar. Além disso, uma mulher, Jennifer (Olivia Morris), também se junta a Bheem. Ela é outra facilitadora dos planos da tribo. Além disso, ela é branca, rica e frequenta a mansão do governador. No entanto, ela simpatiza com o herói indiano desde o início da história. Quanto à relação de Bheem e Ramaraju, os caminhos deles se cruzaram em uma tentativa de salvamento de um garoto, empreitada protagonizada de modo espetacular (Fig. 2):
A partir daí, os dois se inserem em locais e eventos frequentados pela elite, para tentar minar o sistema por dentro. De início, principalmente Komaram Bheem sofre preconceito da elite branca, mas Alluri Sita Ramaraju sai em defesa de seu parceiro, revertendo a humilhação em algo positivo, fazendo prevalecer as vantagens, e não as derrotas (Fig. 3).
Apesar de os protagonistas terem uma base real, a trama é fictícia, pois Bheem e Ramaraju nunca conviveram. Entretanto, esses personagens históricos compartilharam o mesmo contexto cultural por 20 anos. Cada um a seu modo foi destaque na liderança de movimentos que visavam combater o império britânico. Por isso, no filme, como demonstra a cena acima, Bheem e Ramaraju, ao som da música “Naatu naatu”, representam o triunfo dos oprimidos na cidade. Ramaraju não se deixa dominar por seu cargo de subalterno do governo inglês na colônia indiana, assim como Bheem, um campesino, colocado à margem do centro, não se deixa afastar pelas fronteiras, nem pelo poder hegemônico.
Dessa forma, Bheem e Ramaraju encaixam-se no que Glauber Rocha classificava como famintos (ou oprimidos): “[…] o comportamento exato de um faminto é a violência e a violência de um faminto não é primitivismo” (ROCHA, 2008). Portanto, os desejos dos protagonistas de RRR alinham-se a este princípio do Cinema Novo:
[...] uma estética da violência antes de ser primitiva é revolucionária, eis o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado: somente conscientizada sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo o horror, a força da cultura que ele explora. Enquanto não ergue as armas, o colonizado é um escravo: foi preciso um primeiro policial morto para que o francês percebesse um argelino. (ROCHA, 2008)
Entretanto, é preciso destacar que a ideologia de Glauber Rocha não era um estímulo à barbárie. Tratava-se, sim, de uma atitude desalienante e crítica (GOMES, 1980), calcada na observação atenta da sociedade e das relações complexas que se estabelecem dentro dela, como consequência do poder hegemônico:
[...] essa violência, contudo, não está incorporada ao ódio, como também não diríamos que está ligada ao velho humanismo colonizador. O amor que esta violência encerra é tão brutal quanto a própria violência, porque não é um amor de complacência ou de contemplação, mas um amor de ação e transformação. (ROCHA, 2008)
Estudioso do Cinema Novo, Ismail Xavier, no livro Sertão-mar, destina um capítulo inteiro à análise da estética da violência, na obra de Glauber Rocha e na cultura brasileira, desde 1950. O crítico considera a violência como “‘possibilidade única’ do colonizado frente à dominação a ele imposta, num tipo de argumentação que toma como base a dialética do senhor/escravo” (XAVIER, 1983, p. 154, grifo no original). Dessa forma, “a afirmação do eu se dá pela negação do outro” (XAVIER, 1983, p. 154). Assim, fica claro que é necessário um ponto de virada, para que as revoltas sejam ouvidos, em favor do protagonismo. Nesse sentido, além de RRR, podem ser citadas produções cinematográficas anteriores, as quais tematizaram a mesma questão, de dominação e revolta: Bacurau (BRA, 2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles; Parasita (KOR, 2019), de Bong Joon-ho; e Glass Onion (EUA, 2022), de Rian Johnson.
Embora essas produções coincidam na retomada de uma atitude revolucionária, estudos relativamente recentes apontam para a impossibilidade disso, na sociedade contemporânea.
É importante distinguir entre um poder que impõe e um poder que estabiliza. Hoje, o poder que estabiliza o sistema assume um disfarce amigável e smart, tornando-se invisível e inatacável. O sujeito submetido nem sequer tem consciência da sua submissão. O sujeito pensa-se livre. Esta técnica de dominação neutraliza a resistência de modo eficaz. A dominação que reprime e ataca a liberdade não é estável. Por isso o regime neoliberal é tão estável [...]. (HAN, 2023)
Portanto, pode-se afirmar que a cortina de fumaça criada pelo regime é muito similar àquela instaurada pelo consumismo. Para os mais desavisados, o consumo é um indicativo de liberdade. Ledo engano! Afinal, consumimos os produtos que nos são ofertados. Onde está a liberdade, então, se a escolha restringe-se àquilo que já foi determinado por alguém?
Dessa forma, o filme RRR, antes de ser uma conclamação, é uma tentativa de compensar a falta de criticidade. Antes de querer lutar, é preciso se dar conta das relações de poder que foram instauradas, às vezes aos berros e às vezes de modo silencioso e sorrateiro.
Texto originalmente publicado no blog Interartes, em 2023.
REFERÊNCIAS:
GOMES, P. E. de S. Cinema: Trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
HAN, B.-C. Por que é que hoje nenhuma revolução é possível? Disponível em: <https://www.revistapunkto.com/2015/12/porque-e-que-hoje-nenhuma-revolucao-e.html>. Acesso em: 8 out. 2023.
ROCHA, G. Uma estética da fome. Disponível em: <http://tropicalia.uol.com.br/sit
e/internas/leituras_gg_cinenovo.php>. Acesso em: 24 mai. 2008.
RRR: Revolta, rebelião, revolução. Direção de S. S. Rajamouli. IND: DVV Entertainments; Lyca Productions, Pen Studios e Netflix, 2022. 1 DVD (187 min); son.
XAVIER, I. Sertão-mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Brasiliense, 1983.
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